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A TEREZINHA DE CHICO BUARQUE: UMA PSICOLOGIA DAS RELAÇÕES AMOROSAS

1 - Chico Buarque compôs algumas canções que remetem ao universo infantil, entre as quais destaco “João e Maria” e, sobretudo, “Terezinha”.

2 - Esta última é uma sobreposição de textos, um dos quais está visível para quem lê, audível para quem ouve; já o segundo texto, como que subterrâneo, precisa ser desvendado a partir da frase musical que enceta a canção, e que vem a ser a mesma frase inicial da melodia de uma cantiga de roda: “Terezinha de Jesus”.

3 - Em nenhum momento, no texto de Chico, a não ser no título, se lê o nome “Terezinha”. Entanto a frase melódica que dá fulcro aos versos “O primeiro me chegou”, “O segundo me chegou” e “O terceiro me chegou”, um refrão, é a mesma que embala, na cantiga popular, os versos “Terezinha de Jesus” e o “O primeiro foi seu pai”.

4 - Em ambos os textos, a “Terezinha” está fragilizada: “de uma queda, foi ao chão”. E três homens se oferecem para ampará-la. Na cantiga, “o primeiro foi seu pai / O segundo, seu irmão”. O terceiro é designado apenas como “aquele”: um inominado, um desconhecido. E, aqui, temos um outro elo instigante, ainda que, eventualmente, fortuito, entre textos poéticos: em “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, o último dos amantes enumerados não é, no sentido próprio, um inominado, mas é, sim, alguém “que não tinha entrado na história”: um “J. Pinto Fernandes”; e, novamente, é aquele que se casa com “Lili”, a que não amara ninguém, até então, formando o único par bem-sucedido da trama.

5 - O inominado, na poesia de Chico, é aquele que: não é o pai, não é o irmão, não é — familiar a ninguém; i.e., como o “J. Pinto Fernandes” de Drummond, não fazia parte da história, ou, noutros termos: não era uma figura construída a partir dos afetos e da dinâmica familiar. Ora, tanto a poesia de Chico como a de Drummond são escritas num período de apogeu da psicologia e da psicanálise, em que as relações familiares são propostas, mais que nunca antes ou depois, como arqué de todo o psiquismo.

6 - Desvendado o código para o entendimento da “Terezinha” de Chico, qual seja, a superposição desse texto ao da cantiga “Terezinha de Jesus”, a partir da percepção da coincidência das frases melódicas já apontada, resta claro quem são os dois primeiros homens a acudirem a personagem: duas encarnações de tipos psicológicos: respectivamente, — o pai e o irmão.

7 - O pai chega como um provedor: traz flores, traz um brinquedo: “um bicho de pelúcia”; traz “um broche de ametista”, ou seja: inúmeros presentes. E conta de suas viagens e vantagens; mostra, por fim, a “Terezinha” o seu relógio e a chama de rainha. Esse pai, como tipo do psiquismo, está, portanto, traçado com perfeição em poucas pinceladas de funda sagacidade. Curiosamente, ela o rejeita porque “não lhe negava nada” e isso a assusta: não é uma relação, senão uma adoção e, embora, tocada no seu coração, ela diz: não.

8 - Já o segundo que acorre à “Tereza” é o irmão. A relação é como costumam ser as vivências entre irmãos e irmãs na infância: não desprovida de erotismo e prazer, mas, amiúde, áspera, conflituosa. Essa figura do psiquismo baseada nas ligações familiares repete para Tereza a do menino que, um dia, escondeu sua boneca e não entregava, que a xingou, que mergulhou sua trança no tinteiro; foi perverso, abusivo, brutal, mas também irreverente, por vezes, engraçado, e, de algum modo: fascinante e amado, revelando, pela primeira vez, a surpresa diante das diferenças. O irmão, como tipo psicológico, tem as nuanças do dito — cafajeste, a que tantas outras Terezas, se sentindo fortemente ligadas, teriam dado a mão. Mas não a de Chico: o irmão não lhe cedia nada e, nessa sorte de jogo, a personagem também não percebe a possibilidade de uma relação.

9 - O inominado, enfim, foi “aquele”: “[...] foi aquele / A quem Tereza deu a mão”. Este não é uma figura familiar, ou, precisamente: da família, ou do psiquismo erigido a partir desta; não tinha aparecido na história: “Mal sei como ele se chama”, ela diz, “Mas entendo o que ele quer”. O inominado se deita na sua cama e à chama de: mulher. Ele a trata como complemento, como possível companheira, e nada mais. Não corresponderia ao ideal de quem busca um provedor, um ponto de apoio diante das dificuldades apavorantes da vida.

Não traz aquela ordem de fortes emoções baseadas em dor e prazer, em sustos permanentes que a força bruta do irmão garantiriam. Não: o inominado de “Terezinha” está mais próximo do “João”, da poesia “João e Maria”, do mesmo autor, supracitada: ele a convida a penetrar no seu mundo e a completá-lo: a inventá-lo junto com ele.

10 - O “João”, de “João e Maria” é um Dédalo, em certo sentido: ele abre à sua amada o labirinto dos seus sonhos, das suas fantasias, de possibilidades infinitas, desde que compartilhadas com ela, pois sozinho não as pode viver. “Maria”, entanto, se assusta, quando “João”, tal como Adão, desvenda a nudez de ambos: “E você era a princesa que eu fiz coroar / E era tão linda de se admirar / Que andava nua pelo meu país”. Nesse momento, como a “Terezinha”, diante do tipo do pai, diametralmente oposto, “Maria” se assusta, e corre, some no mundo. Em vão, "João" roga: “vem, me dê a mão”; e já procura soar mais familiar e comportado, quiçá, mais paternal: se oferece como — brinquedo, pião, como “seu bicho preferido”...

11 - “Maria” quis adentrar o mundo de “João”, mas, súbito, se melindrou: é adâmico, pecaminoso! Decerto, a faria se perder de si mesma, dos seus valores familiares, da sua busca e reto caminho. Ela, simplesmente, não quer se arrojar mais adentro. E foge.

12 - Já “Tereza” é uma Ariadna: a Senhora do Labirinto. Está à vontade para conhecer o mundo não-familiar, e, portanto, de todo estranho, de todo novo daquele que a trata, basicamente, como mulher, ou — fêmea, i.e., apelando diretamente aos seus instintos, intuições e impulsos desnudados.

13 - O inominado é pré ou anti-socrático, é pré ou anticristão: é só um homem e não está culpado em relação a isso; oferece um mundo, mas um mundo a ser construído ainda, e construído a dois. Assim é que vai chegando, impressentido, e, antes que ela o perceba: já “se instalou feito um posseiro” dentro do seu coração.

Igor Buys

16 de julho de 2017

Foto da modelo Stefany Basso

Stefany Basso

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