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PEDERASTIA, AMOR PLATÔNICO E ELISÃO DO ELEMENTO FEMININO NA GRÉCIA DO SÉCULO IV a.C. [Segunda parte]

Platão, já se o disse, é o filósofo da convergência; a convergência é o seu objetivo final, é onde desemboca todo o seu labor. A divergência, por outro lado, incomoda o pai da filosofia; quiçá — e apenas quiçá — toda dualidade e diversidade que não tendam para a unidade o perturbem emocionalmente, lhe pareçam perniciosas, ofensivas à sua compreensão do belo, do harmonioso, devendo ser eliminadas: só assim, será possível construir a cidade ideal, o país da convergência definitiva, onde todos, ao cabo do debate perfeito, do exercício dialético ordenado e, portanto, infalível: concordam, e são felizes.

A inteligência lógico-verbal, dentro do regime pederástico, ou socrático, é um oráculo inquestionável: um expediente, no fundo, mágico: o que passa pelo crivo dessa sorte de razão — a única razão propriamente dita, até Kant — está correto, é verdadeiro e imutável, não podendo ser contradito, ou, simplesmente, o jogo em si das palavras fora mal articulado, mal montado.

Na Grécia dos gene, a Grécia homérica ou poética, não havia a propriedade privada: tudo pertencia a todos do clã. E o clã era uma grande família, chefiada por um patriarca. Toda a estrutura geradora de verdades do genos se baseava no casamento monogâmico e este comportava, por força, uma dualidade de potências, da qual se desdobrava a multiplicidade no seio da linguagem: havia um pai e uma mãe no princípio de tudo, na arqué da vida social e do mundo.

O patriarca era quem tomava as decisões, quem dava a palavra final, dizia a verdade fechada, definitiva sobre o direito e os deuses. A voz da matriarca, entretanto, era dotada de uma potência muito ampla: ela dizia a verdade ainda não definida, ainda não delimitada; apelava aos sentimentos, às afetividades, pois conhecia seus filhos e seus netos; conhecia as esposas destes e privava com elas, compreendia e atenuava as histórias e as verdades individuais, debatendo com o patriarca de uma posição privilegiada que ninguém mais tinha: a de esposa, de companheira. Assim, a vida do genos comportava uma diversidade fundamental muito nítida.

Tal cenário é propício à produção das verdades mítico-poéticas que marcaram o período homérico, ou romântico da história grega; nada precisava ter, de início, um valor fechado e definitivo: a linguagem imagética do mito explica sem definir, permitindo matizes de interpretação, e interpretações sempre válidas em relação ao momento atual, à luz de demandas concretas; o mito apazigua as incertezas, contemporiza as divergências, sem reduzi-las a um denominador matemático, artificial e rígido. Neste mundo há paz, prosperidade, confiança mútua, intimidade e sonhos compartilhados, os quais representam a força da criação, da poiesis, e fundam a — sabedoria.

Estamos já no reino poético de Sophia.

Quando surge a pólis, sobrevém um processo de laicização da linguagem, que deixa de ser mítico-poética e passa a ser físico-poética: é o período áureo dos físicos especulativos, ditos pensadores originários, o mundo dos sábios e da sabedoria a que o nome filosofia, cunhado, quiçá, por Pitágoras e difundido por Platão, mais claramente faz menção, segundo o entendimento geral. Entanto, neste período, ainda não se dera uma ruptura drástica com o modo de construir o pensamento observado na sociedade dos gene: a apreensão da verdade continua sendo poética, ficcional: imaginativa.

O que provoca a catástrofe do genos é, efetivamente, um mistério. Dirão alguns que é a explosão demográfica, mas as células sociais poderiam se ter reproduzido, indefinidamente, comerciando entre si e formando, quiçá, estruturas microfederativas que preservassem aquele mesmo modo comunal de vida.

O que explica, deveras, na mítica grega, a derrocada de uma forma de governo e de um modo de produção de verdades em prol da ascensão de outro sistema é sempre o desejo de poder — o que remete de pronto a Nietzsche e Adler, diga-se de passagem —, acarretando antíteses, invariavelmente, violentas.

No princípio, o mundo fora governado por Urano e Gaia, que produziram a sua prole e fundaram o seu genos. No seio deste, surge uma nova espécie de seres, os Titãs, que suplantam seus pais, — castram, por meio de uma foice, o patriarca celeste, e fundam uma nova ordem. De entre os Titãs, surgem os olímpicos, que repetem tal processo, destronando Cronos. E, após a ascensão dos olímpicos, surge o ser humano, que se esperava, pela lógica, tentasse superar os deuses: assim o predissera, inclusive, uma profecia e Zeus procurara castrar no homem a possibilidade de sua raça sub-rogar os seres que comandam as forças naturais, os deuses... Hoje, para coroamento completo dessa tese, os homens, que já domaram, em larga medida, as forças da natureza, experimentam temor semelhante em relação às máquinas e ao que se chama de inteligência artificial.

O ser que constitui a pólis, esse novo humano, — que, em breve, será chamado zoon politikon por Aristóteles, como se essa designação perfeitamente se aplicasse a todo e qualquer tipo de homem —, inventa, no mundo grego, a propriedade privada e, por antítese, a coisa pública, e põe termo ao regime coletivista do genos, com sua nova forma de produzir, em quantidade superior, verdades mais rápidas, mais simples.

O caráter de intimidade dos ritos — sacrificar aos deuses, contar estórias, lendas, resolver questões com recurso à afetividade dos patriarcas — é substituído pela franca publicidade de novos métodos de gerar verdades. A apreensão poética do mundo dá lugar ao racionalismo pragmático, e é preciso debater, submetendo ao oráculo da palavra, da inteligência lógico-verbal, todas as verdades antes de fazê-las valer, pois já não há mais pais e mães na estrutura do arranjo social que equacionem a paz e a harmonia, permitindo que as divergências e as diferenças subsistam sem guerra, sem destruição e autofagia sistêmica.

O modo de pensar dos homens vai migrando de um romantismo-realismo — onde as coisas têm um em-si e os signos se sabem signos, abstrações do em-si das coisas — para um reducionismo idealista: a verdade que se extrai do ágon dialético precisa ser, ao menos em aparência, forte, imutável, convencendo por si mesma a todos os que inicialmente divergiram e, pouco a pouco, vão sendo criados métodos de dizer verdades mais e mais determinadas, nítidas, fechadas, cogentes: pétreas.

Eis o palco perfeito para o despontar do pensamento socrático, ou pederástico.

Quanto menos vacuidade as verdades contiverem, quanto menor dubiedade de interpretação permitirem, melhor se deduzirá delas a necessidade da riqueza e da pobreza como partes de um processo lícito.

Nasce, por certo, em muitos artífices sociais o desejo de suprimir a feminilidade vacilante, a indefinição sentimental, o elemento “mãe boa e equânime” do seio da linguagem: cabe, para o sucesso da pólis, a instituição de um discurso que não pretenda mais dar lugar à eqüidade, à distribuição conforme a necessidade, mas seja útil para promover a distribuição conforme algum tipo de — justo merecimento. A nova ordem impõe que ter muito ao lado de quem tem pouco, ver sobejar de sua mesa o que na mesa do próximo é faltoso para garantir a simples sobrevivência deva parecer coerente, honrado, bom, belo e, de algum modo, producente para todos, se externando, paradoxalmente, como resultado de uma vontade comum, i.e.: democrática...

Sim: é tempo de suprimir os resíduos da voz da matriarca do clã das negociações da vida útil. É tempo de dizer: “sim, sim; não, não”. Esqueçam-se todos de dizer: quase; de dizer: sim, até certo ponto; de dizer: mais ou menos; de dizer: profundamente, imensamente, rasamente; de dizer: por ventura, pode ser... Olvidem os homens a gradação, o matiz dentro da linguagem: esta deve expressar o necessário, a cogência e, se possível, se pautar em algo que funde o definido, o delimitado, o exato, a partir do imutável, do separado (sanctus): do que se não possa questionar, ao cabo do processo dialético formalmente perfeito.

E este ideal importa, em suma, em remover do mundo o elemento feminino mesmo. O feminino é o côncavo, é o poroso, é o permeável, é o atrativo, o vácuo que permite sempre a descoberta de uma outra e nova conotação; o feminino é o elemento receptivo, é o aberto: sem limite, sem borda, sem termo, sem definição... E sem utilidade no embate chão da ágora, onde se precisa, por todo e qualquer meio dialético disponível, chegar ao termo final: à conclusão cabal.

Igor Buys

29 de maio de 2011 / 26 de fevereiro de 2017

Detalhe da escultura Apolo e Dafne, de Bernini

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