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VARGAS VILA E SEUS ANÁTEMAS

TRANSCRIÇÃO:

“Assim falou Vargas Vila”

Anátemas sobre livros, amizade, política, religião etc.

“Duvide. Nenhuma fé até hoje foi tolerante. A dúvida é a tolerância. A fé levantou fogueiras, a dúvida não as levantará jamais. Toda fé é uma tirania e todo crente é um escravo. Não acredite”

Vargas Vila

As palavras de Vargas Vila nos convidam à reflexão; seus temas são universais. Ele me foi apresentado por Ezio Flavio Bazzo, organizador do livro “Assim falou Vargas Vila”.[1] O autor dos 323 anátemas selecionados, cujo nome completo é José Maria de la Concepción Apolinar Vargas Vila Bonilla, nasceu na Colômbia em 1860 e morreu no ano de 1933, em Barcelona.

Os trechos apresentados por Bazzo constituem apenas uma pequena amostra das milhares de páginas que compõem a obra de Vargas Vila. São, porém, suficientes para escandalizar uns e levar outros a refletir sobre os significados mais profundos da vida em sociedade. Este autor maldito, banido de sua terra natal, foi um “novelista, militante panfletário, jornalista, niilista, ateu, anticlerical e obsessivamente indignado com a palhaçada fastidiosa reinante na América Latina, principalmente com o carneirismo vergonhoso de sua política e de suas assembléias” (Bazzo, 2005: p. XXIII). Seus livros foram censurados, queimados em praça pública e a igreja ameaçou de excomunhão quem se atrevesse a lê-los.

Embora escritas há muito tempo, suas palavras são pertinentes e “têm tudo-a-ver com o hospício vigente de nosso cotidiano e com as psicopatologias secretas e reincidentes de nosso imaginário...” (Id.: XXXII). Os fanáticos de todos os tipos, religiosos e/ou políticos, provavelmente se sentirão desconfortáveis se lerem frases como estas:

“Aspirar em desmascarar ou em eliminar as falsas verdades já é ter uma fé em uma verdade; e eu não sei em quê o despotismo científico que padecemos seja mais livre que o despotismo teológico que o precedeu; e isso, porque toda fé é uma tirania; e mudar de fé, é mudar de servidão; só a dúvida é livre” (XXXVIII).

“A idéia que se cristaliza, já não é uma idéia, é um preconceito, e pode haver algo mais prejudicial que um preconceito filosófico? Desse detrito de todas as idéias é que se formam as religiões” (LXX).

“Não existe nada mais vil na escala dos despotismos que o escravo intelectual ou, melhor dizendo, o intelectual escravo, que tendo consciência de sua baixeza, não renuncia a ela. Para ele, a escravidão não é uma desgraça, mas sim uma profissão” (LXXIX).

Os dogmáticos têm dificuldade em admitir que “só a dúvida é livre”. O sectário necessita veementemente acreditar em sua fé, em sua verdade absoluta. O passo seguinte é a tentativa, dissimulada ou violenta, de impor o que considera “justo” e “verdadeiro”. Tais indivíduos não se contentam em querer o “paraíso” apenas para si, mas precisam “salvar” os que não comungam das suas idéias e crenças. Eles almejam impor o “seu paraíso”, os seus deuses e ídolos. Vêem-se como pastores cuja missão é arrebanhar o máximo de almas possível; sua retórica catequética tem como método o medo e o argumento maniqueísta. Eles se consideram os “eleitos”, e os que não aderem à sua “igreja” são os a serem “salvos”, os “perdidos” e, no limite, os “condenados”. Como fala Vila Vargas:

“Aquele que está disposto a sacrificar sua vida por uma idéia, está disposto também a sacrificar a dos outros em homenagem a ela; por isso se pode tão facilmente fazer de um mártir, um verdugo” (XLV).

Os mártires do nosso tempo, com suas “guerras justas”, são os soldados da intolerância, da ideologia política que se transmuta em religião. É o despotismo renitente que ressurge, ainda que sob a capa da política racional e da ciência. Para Vargas Vila:

“O grande cúmplice da tirania é o silêncio; não atacar o despotismo é a maneira mais covarde de servi-lo; não denunciá-lo é auxiliá-lo; estar próximo dele sem feri-lo é a maneira mais vil de protegê-lo; e proteger o crime é mil vezes pior que cometê-lo; eis aí a hora em que a palavra é um dever e o silêncio é um crime” (XLVIII).

O dever do intelectual é romper o silêncio, ainda que sua voz seja abafada pelos poderosos e seus cúmplices de plantão. Em tempos de intolerância, racismo e fundamentalismos, calar é criminoso. E já que nos referimos aos intelectuais, vejamos o que afirma Vargas Vila sobre os livros:

“À simples presença de um livro, sinto o desejo súbito de fugir; não me atrevo a tocá-lo; tenho a impressão de que aquilo é um cofre mal fechado que guarda uma víbora encolerizada e fatal que vai grudar-se à minha mão, inocular-me seu veneno e não me soltar nunca...” (XXXV).

“A desgraça dos homens de letras está em que, preocupados com a imortalidade, não se ocupam em ganhar a vida; morrem de fome, pela fome de não morrer; e não tendo o que comer no presente, se encarregam de devorar o futuro... e se alimentam com os lauréis do porvir; eis aí, porque todo gênio tem algo de herbívoro... devoradores de hipóteses” (XXXIX).

“Um livro te faz sofrer? Leia-o. Esse livro te salvará” (LXIX).

E, realmente, há livros que são perigosos; os ditadores e censores de todos os tipos que o digam. Não obstante, talvez o perigo maior esteja em transformá-los em objeto de culto, em suspender a dúvida e acatá-los como a “verdade a ser proclamada”. O tratamento religioso dos livros não se restringe àqueles que fundamentam as religiões, os quais são assumidos como a doutrina inquestionável, a verdade revelada; há autores profanos transformados em profetas e seus livros religiosamente cultuados como a última verdade proferida. E ai dos hereges que duvidarem da palavra profetizada e interpretada pelos especialistas, os seus guardiões.

Também é perigoso tomar os livros como a realidade. Se na ficção há lugar para personagens como D. Quixote, é triste o quixotismo moderno dos que vivem com os pés no chão e a cabeça nas nuvens e se mostram sempre ciosos de abstrair e restringir a conceitos a realidade dos homens concretos, de carne e osso, com suas qualidades e imperfeições. Estes são transformados em abstrações e/ou dilemas a serem superados pelo debate teórico. Quando só se consegue experienciar a realidade pela ótica dos livros, seus personagens fictícios adquirem vida própria e os modelos conceituais existentes em nossas cabeças passam a delimitar os personagens reais que caminham sobre o mundo. Os que se tornam escravos dos livros, não percebem a riqueza que há na simplicidade das relações humanas cotidianas concretas. O livro também induz à perdição, isto é, à perda do sentido do real. O apego exagerado aos livros é uma espécie de doença[2] que potencializa a vaidade dos candidatos a “gênios”, os quais, cada vez mais, se isolam do mundo dos simples mortais. Os que se encontram no Olimpo, ocupados com a imortalidade, têm dificuldades de se reconhecer nos comuns, cujos pés e cabeça teimam em se firmar na terra.

Os que preferem os livros à companhia humana, ou que só conseguem dialogar com aqueles que se identificam com suas leituras, falam de amizade como se esta tivesse seu fundamento nas teorias, conceitos e ficções literárias. Eles são capazes de debater por horas sobre o significado da amizade, desde os clássicos da antiguidade, mas são incapazes de suportar o amigo de carne e osso se este o trás de volta à terra e lhe fala em linguagem espontânea e vulgar. Parece que se protegem contra os choques que as relações pessoais reais inevitavelmente causam. Uma coisa é discutir a dialética dos livros, outra é assumir os conflitos inerentes ao humano.

Devemos tentar compreender. Em geral, os homens necessitam das ilusões e os livros são um convite à imaginação. Os homens são capazes de amar a humanidade em geral e até mesmo de se declararem dispostos a morrer por esta, mas são profundamente incapazes de suportarem o indivíduo concreto e específico. O próximo torna-se o distante, o conceito, a abstração. O ser humano tem dificuldade de assumir a verdade para si e nas relações com os demais. Ele precisa se refugiar na imaginação e na mentira. Dostoievski, que compreendia como poucos a alma humana, observou que:

“Existem nas recordações de todo homem coisas que ele só revela aos amigos. Há outras que não revela mesmo aos amigos, mas apenas a si próprio, e assim mesmo em segredo. Mas também há, finalmente, coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio...” (1992:99).

Vargas Vila afirma algo semelhante:

“A sinceridade é uma virtude que a devemos somente a nós mesmos. Praticá-la com os outros é um suicídio” (LXXXIII).

Seja sincero e você corre o sério risco de ver decretada a sua morte social. Muitos lhe considerarão inconveniente e grosseiro; outros dirão que você padece da ingenuidade dos loucos e das crianças – os únicos que, em geral, não temem a espontaneidade – e o aconselharão a “pensar antes de falar”; dirão que seu tom de voz é ofensivo. O ser humano precisa mentir e, especialmente, ouvir mentiras. Ele não está preparado para conviver com a verdade. A mentira é o fundamento da nossa sociedade:

“O único método reflexivo de triunfar é a mentira; a verdade é espontânea e irreflexiva; por isso leva sempre à derrota; ninguém se salvou por dizer uma verdade; todos os vencedores o foram pelo poder de uma mentira...” (XXXIX).

“A mentira é o estado natural do homem. Na mentira vivemos, pela mentira gozamos e é do seio generoso da mentira que extraímos as únicas gotas de mel que adoçam a vida. A mentira é a esmola dos céus, nela vibra a bondade suprema, é ela que dá força ao espírito para não desfalecer, não morrer, não fechar as asas e cair dos céus exóticos do sonho sobre a terra miserável” (LXXII).

“A verdade é de tal maneira odiosa aos homens, que quando mencionam uma, a colocam na boca de um louco como Hamlet. E é para provar sua loucura que este diz uma verdade” (LXXX).

Nestas condições, onde a verdade deve ser socialmente dissimulada e substituída pelas aparências, talvez Vargas Vila esteja certo quando define a amizade como uma:

“... forma de comércio entre os homens, máscara de Aristófanes sob a qual se gesticula à vontade; consórcio de duas vaidades, junção de duas mentiras sob qualquer interesse sempre bastardo (...) a hipocrisia é o laço que une os homens em sociedade: no dia em que imperasse a franqueza, se destruiriam uns aos outros como os soldados de Cadmos” (XLIV).

“Assim falou Vargas Vila” e suas palavras “falam” por si mesmas. Resta-nos apenas escandalizar-se ou suspender os nossos preconceitos e refletirmos sobre o seu significado. Não precisamos acatá-las como verdades absolutas. Contudo, se não somos dos que temem a dúvida, temos algo a aprender. Afinal, se atentarmos bem para o nosso cotidiano, talvez nos assustemos em perceber que tais palavras, por constrangedoras que pareçam, servem bem para pensar o indizível, aquilo que não temos coragem de pronunciar. Quantos de nós estamos dispostos a assumir os riscos de dizer aos nossos amigos e pessoas amadas o que realmente pensamos delas? Quantas amizades, casamentos etc. resistem à verdade? Talvez por isso preferimos nos enganar mutuamente, como se pisássemos em cristais sem assumirmos o risco de quebrá-los.

Bazzo, ao disponibilizar parte da obra de Vargas Vila, pretendeu causar um “maremoto nas consciências dos leitores” e, ainda, fazer estremecer “as estruturas frígidas e canônicas do palavrório irracional vigente e da língua” (XXXI). Talvez alguns dos leitores tenham desistido de enfrentar a tormenta. Você que acompanhou estas reflexões até aqui, espero contar com a sua companhia até completar a travessia. Leiamos mais alguns anátemas de Vargas Vila:

Sobre Política...

“É sendo homem de partido que se chega ao poder; mas é deixando de ser homem de partido que se conserva o poder; os traidores sabem muito bem disso, e o praticam” (XLIII).

“De todos os inimigos das revoluções ninguém mas incomodados nem mais intolerantes que aqueles que foram revolucionários; eles não perdoam aos que pretendem levar à vitória os movimentos que eles levaram ao desastre. Crêem que porque eles envelheceram, as idéias envelheceram também, e que sua decrepitude é a decrepitude do mundo” (Id.).

“O direito ao voto me parece um direito ao envilecimento ; votar é abdicar; é eleger-se um amo; é dar-se um amo, é mais vil que suportá-lo; um homem livre não pode se aproximar de uma urna eleitoral se não é para Quebrá-la; votar é perpetuar a vida do tirano; daquele tirano que nos escraviza e nos envilece a todos: o Estado” (LIV).

“É tão fácil ter partidários... para isso basta renunciar a nossa liberdade. O que é difícil é conservar-nos autênticos e livres” (CVIII).

... e religião

“O homem é a mais forte razão de ateísmo que existe na terra; o homem é um argumento contra Deus” (XXXVI).

“A virtude cristã é uma virtude de escravos”. (LXXII).

“O homem que se ocupa de destruir ídolos, não tem porque se preocupar em fabricar outros: toda idolatria é o culto à mentira. Não existe nada sobre a terra, nem fora dela, nada digno de ser adorado pelos homens. A adoração é um sinal de debilidade, para não dizer de inferioridade” (XCI).

“O ódio dos sacerdotes aos filósofos e dos filósofos aos sacerdotes, não é ódio, é rivalidade de pastores empenhados em conduzir sozinhos o rebanho... e de tosquiá-lo” (CI).

“O mundo é tão absurdo que para explicá-lo, o homem teve necessidade de um absurdo ainda maior e criou Deus... e exclamou: credo in absurdum” (CVIII).

“Nada nos faz desconfiar mais da existência de Deus do que as pessoas que acreditam nele” (CIX).

As palavras de Vargas Vila fizeram-me pensar sobre a vida em todos os seus aspectos. Ficou o paradoxo da certeza expressa na epígrafe: duvidar; duvidar de mim, de todos e também do que li. Espero que tenhamos sobrevivido, sem ressentimentos, intolerância e/ou preconceitos, aos anátemas relacionados. Que cada um reflita e tire as suas próprias conclusões...

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Vargas Vila - arte nossa sobre foto pública

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