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DO MEU PERVERSO, MEU MAL DITO

O meu não-dito, meu mal dito é o meu pior desafeto!

E eu sou a sua sombra e perseguidor implacável!

Tudo o que desejo é dizer-me, descalar

da alma, do sangue os seus gritos de escarlate!

Minhas sombras, meu clarões, silêncios e trovões:

que se me arrojem do corpo imo e ganhem forma

no -- Ser Humano! esse eu-coletivo, habitante do mundo.

Não, não há um ser humano de pé ali, na esquina; outro

a contemplar o espelho baço de dentro de tuas calças!

És um indivíduo humano, um homem;

já o Homem, com aquele H maiúsculo da sociologia

e da filosofia arcaicas, esse Homem é uma mentira grotesca!

O que há são os-homens: o Ser Humano ou,

tão-só: o Ser, essa malha viva de puro verbo, da qual todos nós,

indivíduos humanos, -- participamos.

O indivíduo é subjacente em relação ao mundo: não está, de início, aí:

onde dispara, -- injetado na palavra que todas as bocas conformam

em comunhão, coletivamente --, os seus ilimitados, quais sejam:

o sentir, o sentido,

a pulsão,

o instinto, o impulso,

a intuição.

O indivíduo? Não, não é visível, não é audível;

não está no espaço ou no tempo: ora, pois se é indivíduo

por excelência…; se se o não pode dividir para caber em metros,

horas,

milissegundos, eras, continentes…

Em quantas partes de tempo e espaço se divide um sent-

imento, uma vontade, a emoção d’uma saudade?

Percebe: a ordem do indivíduo é a ordem do Ilimitado!

Alma?

A alma é um ácido! já o desvendara Daniel Dennett.*

O que me cabe é derramar de sua essência des-

oxirribonucleica alguma coisa que queime e fique

sobre a pele alva da página, sobre a cútis dos que leiam

meus testamentos! Sim: tudo que escrevo é testamento,

codicilo. Descrevo-me para a posteridade, sempre.

E não posso fazê-lo usando apenas uma forma

ou estilo: preciso ser como Picasso, metamorfo,

esparramado em crisóis; alguns poemas são estudos,

outros são quadros, esculturas, edifícios e pontes!

As minhas fases não findam, sobrepõem-se, ret-

ornam, revolvem. E digo coisas aquém do conteúdo.

Já se me disse que sou doentiamente sincero,

que só um psicopata poderia ser tão franco (risos).

Entanto entendo-me afetivo demais para essa pecha.

Diria que sou a sombra crítica de mim mesmo;

um homem despreocupado em mentir para agradar,

ou desagradar, e, de novo: implacável contra o meu

não-dito, o maldito de mim.

O pré-verso esquivo: o perverso.

Sim, o meu não-dito, meu mal dito é o meu pior desafeto!

Não confundi-lo com o meu silêncio, posto que é grito

inda não expectorado apenas, inda não entregue à pena,

quiçá, a penas..., quiçá, por distração ou desídia.

Procuro o verso menos sutil e mais denso: pleno de qüididade!

Quero atirá-lo contra uma vidraça! mordê-lo, quando em fome!

Denso, denso como o núcleo do átomo: quero fissurá-lo

e cuidar que exploda uma cidade! poupando ao mesmo tempo

cada humano e cada rosa.

Se me suicidasse, o faria nos versos; se me casasse,

haveria um anel no meu poema e se morresse,

ah, se morresse,

apagaria toda a minha letra, toda a minha cena nua.

O verso é o meu teatro, meu labirinto e Minotauro;

segredo meu que devasso e faço público, meu despudor e minha

nádega na rua...; o verso é o meu Narciso redescoberto,

Cristo de mim

e suas chagas. Aqui, não me verás em cadeias, mas ressurreto!

Não me terás riacho, mas tsunami! não saberás meu medo

e meu dia sem banho já sublimados,

senão a minha massa e a minha barba ensanguentadas

dos Leões de Neméia, das flores rubras e das Alvoradas!


Igor Buys

07 de abril de 2011 / 28 de outubro de 2018

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PS: Daniel Dennett professa que a alma é o ADN, o ácido desoxirribonucleico; o destaque à palavra “ácido” para remeter a algo abrasivo, a “alguma coisa que queime” é de intenção inteiramente poética.

Munch; Melancolia

Munch

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