ODISSÉIA
Tens um espírito tal como o de Odisseu.
Queres ouvir o canto das entidades marinhas,
saber o que fez com que outras se lançassem
ao mar de si mesmas, aos seus infinitos, seus
conflitos e turbulências; o que as atraiu e tragou
até se afogarem no seu próprio pathos e manía.
Queres prová-lo; sabes que o mereces por inteiro,
se alguém já o merecera em parte. E que podes
sobreviver; prevalecer sobre o abisso azul,
cavalgar a crina das vagas, ao lado de Posidão.
E nada se move como Odisséia,
a não ser o mar, o amor e a música.
Tens um espírito como o de Odisseu, teu irmão.
Odisséia é o nome da narrativa epopéica dos seus
feitos de herói varão, mas também pudera ser o teu:
sua versão feminina. E não menos febril de sem-fins.
Andar sob a sombra de gigantes, vazar o olho
do ciclope que o imo peito e o horizonte escondem.
Ouvir os poetas cantarem a história dos teus passos.
Que ninguém se move como tu, dirão, a não ser o mar
mesmo, o amor e a música. De todas as musas, a que se supõe
mais selvagem, e no entanto, no fundo de si, é doce.
Para não ires à guerra, à festa da morte com gala e galardoados,
até te fizeras de louca: foste arar uma praia, como Odisseu.
Mas se o mar te convida e reclama, tens de ir, sabes que tens
de ir; não te podes deter a ti mesma, não te podes furtar
ao destino de ter os ventos e o sol nos cabelos, no olhar
e na pele: essa pele que sangra sal e mel ao menor toque,
que sente as mãos da palavra, pressente o movimento do mundo.
E nada se move como Odisséia,
a não ser o mar, o amor e a música.
O mar que espelha o anil, se embebe da treva e se inebria da
chama, se faz labareda, leões de gelo a girarem jubas de âmbar.
O amor que é mar e toda a sua saga revirando nas almas,
no sangue e nos corpos as mesmas jubas e ouros, e já
se apaziguando, azulescendo, adormecendo qual Criança
titânica de peito manso e arfar imenso. A música. A música
que, enfim, te decifra e se traduz no mar, no amor e em ti.
Igor Buys
Ilha Grande, 25 de maio de 2020