INTEMPÉRIES
Eu criei um coração de te amar
que era um coração menino,
um coração de empinar papagaios,
de ter pulado muros, jogado bola na rua
-- coisas que jamais fizera --;
era inventado, roubado, era um coração
de eu ter sido amado ao invés de armazenado
entre meus livros de Mitologia e os de Ciências,
de História, Medicina, tijolo sobre tijolo,
mui bem guardado entre paredes de introspecção e
Eça de Queiroz.
Eu criei um coração de vidro e sopro, apenas
menos delgado que as esferas de sabão, um tanto
menos espelhado que os alindos e atavios natalinos;
usei ainda cola de farinha de trigo e papel fino,
daqueles que dão asas a gigantes de ar quente
e luz no São joão. Ai, esses balões de vinte, trinta
-- ouvia-se falar num pião de cinqüenta metros! --,
erguendo lentamente milhares e milhares de lanternas,
tudo preso com linha, imponderável leveza e arte,
para ir formando desenhos fabulosos: era impossível
fechar a boca e os olhos. Maiores que três edifícios!
escalando o céu e o vento... Puro vidro, puro cristal.
Quase brinquedos de sabão. Mas os içavam buchas
de noventa, de cento e tantos quilos!
as quais foram acusadas de causar incêndios...,
cujas labaredas, verdadeiras ou não, os consumiriam.
Tal era o coração de te amar aninhado em meu peito,
esse engenho do meu verso, frágil e outonal, que no entanto
cabia Deus,
cabia o sonho, tanto cristal, uma estranha forma de força,
cujo nome esqueci, tudo isso que é da ordem
do amar.
E então veio o inverno e essa folha seca, vítrea
quebrou-se, crestou -- notei-a sob o sapato indiferente --
e se me esfarelou no vento: último sinal da estação passada.
Balão quando lambe, bolha de íris e sabão.
Eu nada, absolutamente nada senti: já não tinha um coração
de crepom, e a coisa crespa, apagada, dispersada
aos poucos pelo aflato gélido não conhecia pena de si,
de mim ou de nós.
Era pó.
E era só.
A lembrança de um choro vindo do quarto ao lado,
de uma mão que envolvia com força tão-só a ponta do meu dedo;
a memória de coisas que tiveram cheiro, gosto, peso
se estampava na letra, sim; mas a letra -- mata ensina a tradição.
Um véu longo, um longo véu platinado, tua lágrima da mesma cor
confundiam-se ao fundo branco: gelo rijo por detrás das vogais.
O que sobrou? O que se perdeu?
(É difícil dizê-lo, alcançá-lo agora sem o tal coração de neon).
É difícil cabê-lo em quaisquer pensamentos, sentires,
palavras novas. Volvera já a literatura.
Mas a poesia é nossa filha. Isso posso dizer e afiançar-te.
Ela pulsa, ela canta;
sabe chorar de per si;
aprende a andar com ajuda, mas depois a dispensa de todo.
A poesia é de si mesma, vai onde os pés a levam,
dá-se a quem quem quer, quando quer.
Mas no seu cerne a minha chama em Tocha, a tua Pira oculta,
o seu encontro sagrado
florescem ainda.
E há algo do teu olhar preso ali
naquela independência toda empinada,
há algo do meu afago, das nossas almas ardentes
entrelaçadas, labareda tênue
que o tempo e as intempéries saberão escurecer
jamais.
Igor Buys
Ilha Grande, 25 de agosto de 2019
Kristiana Pelse
