MICROONDAS
Estupradora, diziam. E assassina.
Aquilo se retorcia, já sem cabelos,
por dentro do casulo negro candente,
e a gordura de seu corpo ainda chiava,
chiava, chiava por entre os pneus
empilhados que a envolviam. Os órgãos
internos se viam já cozidos, fígado, rins.
O coração enrijecia aos poucos, dis-
parado. E a gordura de seu corpo
chiava, chiava, abandonando o mondrongo
pelas rachaduras da pele. Esta estoura
como pele de tomate sob a chama do fogão
e se abre em extensos talhos caudalosos.
Estupradora, diziam, estupradora assassina!
A justiça do tráfico, destarte, a estuprou
de volta, e eram trinta, quarenta ou mais,
nesse taliônico mister antes do forno.
Alguém falou num cabo de vassoura
ou pé de mesa. Mas o pedido do cliente
era expresso: não machucar demais,
deixar cozer lentamente no microondas.
Pareciam os filhos do Presidente, pensou,
quando o carro preto, que se diria do Uber,
parou suave ao seu lado e a abordaram,
algemaram e levaram, bem defronte
do hotel onde estava. Ela olhou para
a câmera. Os rapazes de cabelos curtos,
barbas feitas, outrossim, mas sem abalo.
A assassina viu, enfim, do outro lado da rua
dois policiais miltares, cabeças a girar qual
radares. Viatura imóvel. Azul, branca. Braços
cruzados. Carro arrancando. O mar silente.
Estupradora, gritaram, estupradora!
Das mãos dos homens de poucas palavras
ela passou às do tráfico. Viela suja, mar do
Rio de Janeiro já distante. Cheiros fortes,
que se tornariam cada vez mais fortes,
culminando com o cheiro de carne queimada,
pele frita, gordura chiante, chiante. -- Chianti!
“Tem um galo aê?”. E uma galinha para fritar.
Foi a resposta. E ficaram os pacotes. Carro,
escarro; dentada na cara, soco no estômago.
Igor Buys
12 de abril de 2019
Reprodução: "Microondas"; instalação de Rogério Reis