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OS DEUSES DO SAMBA VOLTAM A REPUDIAR O USO DO CARNAVAL PELA IDEOLOGIA DA GLOBALIZAÇÃO

Eu realmente passava mal, em fevereiro de 2012, quando escrevia o texto a seguir, OS DEUSES DO SAMBA CONTRA O CARNAVAL IDEOLÓGICO DE DIREITAD A UNIÃO DA ILHA DO GOVERNADOR. Passava mal e isso, observo agora, relendo-o, ficou, de algum modo, impresso no próprio texto: uma angústia, uma náusea inexplicável: expressão do meu horror pessoal diante daquele desfile da União da Ilha do Governador que versava sobre “a ilha inglesa”.

Este ano, a experiência do mal-estar pessoal se repete em mim. E eu tenho me cuidado muito bem, ando, por exemplo, com a pressão arterial em dez por seis, mais baixa do que jamais fora, mesmo na juventude, e de excelente humor. Porém, assistir o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, pela TV que seja, tornou-se algo desprazível para mim ao ponto de me causar ânsias de difícil explicação médica.

O carnaval carioca está sendo francamente utilizado como veículo de disseminação da ideologia da globalização, i.e., da ideologia que pugna pelo extermínio das nações, das diferenças culturais e da biodiversidade humana, e tal constatação me é muito sofrida.

Em 2013, a União da Ilha veio com um belo enredo sobre o centenário do Poetinha, Vinicius de Moraes, nascido na Ilha do Governador — Vinicius que, inclusive, foi profético ao comentar que São Paulo é o cemitério do samba: parte do processo de desvirtuamento em questão, sem dúvida, decorre do contato promíscuo de carnavalescos com o carnaval-clone paulistano, manifestação desprovida de qualquer raiz e de qualquer valia cultural ou artística, que poderia ser realizada, facultativamente, em Miami, por exemplo. O tema sobre o Poetinha foi desenvolvido com muito recurso aos deuses do samba, às divindades da tradição afro-brasileira e, como resultado, o desfile da Ilha foi uma beleza. Aplausos para essa simpática escola. A Unidos da Tijuca, por outro lado, atual campeã do carnaval do Rio, achou de ter como enredo... ora, a Alemanha. E o resultado foi o mesmo, uma perfeita repetição do ocorrido em relação à Ilha no ano passado. Tudo desabando, tudo dando errando, uma “energia” negativa, segundo relatos, afetando a todos, gente passando mal aos montes, desmaiando, sendo socorrida por bombeiros, um princípio de incêndio sendo apagado, novamente, pelo contingente presente do Corpo de Bombeiros Militar do Rio de Janeiro, e etc., etc..

Os-homens criam os deuses, mas, de certo modo, e em dada medida, também são criados ou recriados por estes. É de mister, primeiro, lançar mão da perspectiva que a Antropologia funda sobre o que sejam deuses e, em seguida, empreender a metafísica desses elementos simbólico-culturais para chegar à compreensão laica com que se trabalha aqui, ao afirmar que: os deuses do samba — Xangô, por exemplo, a quem cabe a justiça e o trovão — repudiaram a presença antipática (contrária ao princípio da sympátheia) de signos como Thor, outro deus do relâmpago, na Avenida sagrada do samba.

Difícil prosseguir com as palavras neste momento, porque tudo é tristeza a envolver o que deveria ser a celebração da alegria e do ilimitado na cidade mais dionisíaca que se conhece hodiernamente. Essa prostituição calculada do nosso carnaval e cultura, algum dia, cessará: “não há mal que sempre dure”, diz o povo; mas, antes disso, eu seria capaz de apostar — e sei que nunca soei tão estranhamente místico antes: uma grande tragédia, um sinistro de todo inédito e chocante, ainda irá ocorrer, de modo emblemático, na Avenida do Samba...

Igor Buys

11 de fevereiro de 2013

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OS DEUSES DO SAMBA CONTRA O CARNAVAL IDEOLÓGICO DE DIREITA DA UNIÃO DA ILHA DO GOVERNADOR

Não sei quando isso mudou. Faz tempo que não assistia o desfile das escolas de samba pela TV, nem tomava pé dos acontecimentos na Sapucaí. Tradicionalmente, eram obrigatórios os temas inteiramente nacionais nos enredos, segundo regulamentação criada na Era Vargas. Mas, este ano, comecei a notar elementos estranhos à linguagem do carnaval nas escolas de samba do Rio de Janeiro, quando a São Clemente mencionou... a Broadway. O carnaval seria “o musical brasileiro”, ou seja: o análogo pátrio das produções teatrais nova-iorquinas que influenciaram o cinema estadunidense dos anos cinqüenta, — de gosto um tanto duvidoso, diga-se de passagem. O paralelo entre a densa arte popular brasileira e tal modalidade de arte comercial que prima pelo superficialismo me soou deveras forçado e, outrossim, pouco honroso. Parecia que se queria apenas encontrar um motivo arbitrário para citar no desfile um complexo cultural alienígena.

Confesso que essa confusão antipática — contrária ao princípio filosófico, ou melhor, físico da simpatia, ou sympátheia, sobre que se falará adiante — de signos culturais, em meio ao carnaval, de resto, até bem simpático que a escola apresentava, a certo ponto, acabou me casando um fundo mal-estar.

Olhei com outros olhos, então, para um balão com a forma inspirada na das mulatas recorrentes nos desenhos do cartunista Lan e fabricado nos Estados Unidos. Diferente dos grandes carros automatizados, aquilo se constituía numa alegoria encomendada pronta e confeccionada através de processos não artesanais, que dispensavam, mesmo em tese, a típica mão de obra dos membros da comunidade. O mesmo se diga de um telão que a escola trazia.

Porém, eu não podia fazer idéia do que viria, logo em seguida, com a União da Ilha do Governador. Foi a concretização do imponderável. E de um imponderável triste, antipatriótico, imbuído da sanha globalizante que ameaça a todas as culturas nacionais, nestes dias. Ora, tratava-se de um incrível enredo sobre... “a ilha inglesa”.

Valia-se o carnavalesco da União da Ilha de mote muito fraco, mais fraco até que o da São Clemente, para agredir as antigas regras da temática do desfile e simplesmente enaltecer a Inglaterra durante toda a apresentação da escola.

Ou pior: enaltecer o império inglês! seus soldados, fardados por toda parte em meio à gente, montados em cavalos negros, qual uma tropa de choque em marcha sobre o povo! Estampavam-se, ademais, sobre o samba “os heróis do Reino Unido”, esses mesmos milicos e suas casacas rubras, encarnadas, naquele contexto, ainda menos gloriosos que puderam ter sido em muitas outras situações. Minha mente turvou-se, por essa altura, mas ouvi falarem, sem nenhum sotaque tupiniquim, sobre um palácio de Buckingham, e era certo que aquilo estava montado, com todas as suas pedras frias e musgos, sobre as almas dos sambistas saudosos que por ali suaram e verteram lágrimas em passados carnavais.

Repito: até a data em que escrevo esta nota, não sei ainda se enredos semelhantes já têm sido suscitados por carnavalescos. E o meu objetivo, certamente, não é estigmatizar a União da Ilha: escola querida, inclusive, desde velhas folias, desde quando, na infância, eu cantarolava o, hoje clássico, samba-enredo: O Amanhã. E, falando nele, suas estrofes me enchem os ouvidos e o coração: Como será o amanhã, responda quem puder, o que irá me acontecer, o meu destino será como Deus quiser...

Só posso dizer que fiquei triste, muito triste, e com o estômago revirado diante do que via naquela noite. Nunca antes eu tinha constatado algo associado aos desfiles da Sapucaí que merecesse ser execrado, mas aquilo... Aquilo, é de mister dizê-lo sem meias palavras: era um insulto infinito ao espírito do carnaval carioca.

Soube, mais tarde, que a União da Ilha já havia apresentado enredo sobre escritor e personagem estrangeiros, em 2010: o Dom Quixote de La Mancha, do espanhol Miguel de Cervantes, tema em si rico. Ora, uma coisa é o Quixote entrar na avenida através do imaginário de Monteiro Lobato, por exemplo; ou o vagabundo de Chaplin, através da poética drummoniana — isso nunca incomodou ninguém —; outra coisa, muito distinta, é um personagem estrangeiro ser o centro da temática do desfile de uma escola. Mesmo que a legislação tenha sido mudada, e mudada por quem sabe muito bem o que está fazendo, o carnaval carioca só tem como ser o carnaval carioca, com a sua típica pulsação de símbolos, quando os temas dos enredos forem inteiramente nacionais e qualquer alusão a personalidades ou cultura estrangeiros, se de todo necessários, forem inteiramente periféricos. Na ocasião, a escola fora, inclusive, premiada, paralelamente, — pelas organizações Globo com o dito “Estandarte de Ouro” para o puxador do samba...

Mas foi em 2011 que a União da Ilha recebeu do Jornal O Globo o Estandarte de melhor escola. O enredo apresentado: a história e as idéias do naturalista inglês Carlos Darwin...

Não à-toa a Rede Globo, através dos repórteres e comentaristas que participavam da cobertura exclusiva, monopolista do evento pela TV, aplaudia o absurdo desfile de 2012 da escola da Ilha do Governador: tratava-se mesmo de uma investida ideológica de ultradireita sobre a celebração popular mais famosa do País.

A cantora Fernanda Abreu é a única que quase menciona a contradição evidente daquele enredo, já pretendendo refutar os que certamente a discutiam, e com argumentos tais como dizer que o Rio merecia ser lembrado também na passarela, — não apenas o Nordeste e a Bahia, em suas palavras. E aquele sombrio anticarnaval lhe parecia (à cantora) fazer jus também à Cidade, já que comparava as ilhas do Governador e britânica. Mas apenas esta última era cantada deveras.

A Globo esforçou-se muito por contornar a polêmica. Entanto para chegar a pôr na avenida aquele carnaval, ficou claro: o principal responsável teve de romper resistências, expor motivos, estando todos bastante alertados sobre a necessidade de abafar a questão, sonegando-a do público. Ficou bem claro: o enredo era ideológico, sem dúvida, e vinha inserido no contexto bastante calculado de uma investida agressiva da forças pró-globalização contra o Brasil e o Rio.

Privados de abordar a História do Brasil, a cultura nacional, de modo sempre educativo, e educativo num nível muito profundo, anímico, egóico, como sempre fora feito no carnaval carioca, a escola, sua comunidade e membros tradicionais, foram levados a narrar a história e suposta grandeza... do império britânico. E, para piorar: com certo tom de humor.

Ora, tal humor, diante do quadro em questão, não mitigava a sua infâmia e ainda soava como um duro escárnio contra o samba, a arte popular, a essência viva do Brasil e... — os deuses do carnaval.

Entanto a agressão a tais deuses e à cultura ancestral afrobrasileira não ficaria tão barata.

Como prenúncio, ainda que mostrando a face oposta da mesma medalha, a porta-bandeira da Portela, Lúcia Nobre, a Lucinha, já havia passado mal na dispersão, mas, entrevistada, explicou: era muita “energia” na avenida. Para Lúcia, ela e o seu parceiro, mestre-sala, estavam lá nas figuras de Nossa Senhora da Conceição e São Sebastião (sic): tratava-se de uma coisa muito religiosa, completou.1

Lúcia Nobre deixava fluir através de si aquela força, emanação da substância do carnaval: era sua guardiã. Já a União da Ilha, mal orientada, usada inescrupulosamente para fins políticos de direita com que nem todos atinam, tornou-se o escárnio dessas mesmas substâncias, — desses mesmos deuses.

Resultado: ao final do desfile, muitos integrantes da escola saíam carregados em macas, cadeiras de roda, com seus veludos e brasões imperiais de alhures, numa cena impressionante... Inesquecível.2

Definitivamente, a natureza em si que pulsa na Avenida Marquês de Sapucaí não estava contemplada, não reverberava simpaticamente naquele enredo. Diz a Bíblia judaico-cristã, na sua validade universal extra-religiosa: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará (Gálatas 6:7). Deus, ou a Natureza, como quer Espinoza, não se deixa zombar assim.

As coisas como as vemos são formadas a partir de três substâncias: o corpo, de um lado, as coisas mesmas, de outro, e a linguagem, significado e sentido, completando a tríade. Entre os gregos, a noção de sympátheia (συμπάθεια) envolvia a relação das coisas mesmas entre si, pois o cosmos seria um zoon (ζώον), um ser animado, vivo, pulsante. Tal noção era empregada no exame do que se pensava serem os efeitos físicos da magia, a qual, mais tarde, fora excessivamente desacreditada e insulada pelo cristianismo. Jung, diga-se apenas de passagem, ao burilar a idéia de — sincronicidade, procurou nexos de correspondência entre os mundos psíquico, físico-orgânico e físico-inorgânico, numa tentativa de resgate — não declarada nestes termos — da noção de sympátheia. A ecologia profunda e todas as perspectivas filosoficamente naturalistas baseadas na Carta do índio Seatle (Ts’ial-la-cum), ou afinadas com esta, e muito em voga, hodiernamente, partem, outrossim, da noção de uma simpatia de fundo entre tudo aquilo que está posto no ambiente.

Entanto a mais intrigante possibilidade de uma advocacia contemporânea da simpatia, de caráter cosmológico-racional, ou melhor, — cosmológico-poético, i.e., levada a cabo ao modo de Nietzsche, seria pôr em foco o fenômeno chamado — teletransporte quântico. Este, como se sabe, também pode ser definido como uma tecnologia que permite alterar determinado sistema apartado de um segundo sistema no espaço através da intervenção sobre este último. O que transita de um sistema para o outro é apenas informação pura, pura forma: nem energia, nem matéria, havendo entre os dois objetos, portanto, uma conexão de fundo, ainda misteriosa, mas de efeitos comprovados e previsíveis. Imagine-se um boneco de vodu que faz o seu objeto, alocado noutro lugar do cosmo, sofrer os efeitos das intervenções que se lhe imponha. Trata-se exatamente de algo deste naipe.

O teletransporte quântico, estimam os cientistas, irá causar um impacto sócio-cultural imensurável nos próximos anos, permitindo o surgimento de computadores quânticos, astronomicamente mais velozes que os atuais. Ademais, o princípio do teletransporte quântico, tem-se especulado, pode dar azo ao surgimento da máquina de fabricação irrestrita, discutida por Mishio Kaku em série científica de TV: um engenho através do qual se transformaria matéria-prima em bens tais como telefones móveis e, quiçá, alimento, remédios — água! virtualmente, qualquer objeto útil. Kaku entende isso como controle humano sobre a “matéria” — para nós, a qüididade —, desde o nível quântico, i.e., desde suas supostas menores partes, ou acidentes.

A coisa em si pulsa. E pulsa além do tempo, do espaço, estes produtos da nossa consciência e sentidos, de modo que sequer precisa estar viva, ou pensando, sequer precisa ser — alguém para mecerer nosso respeito. Vida e pensamento são modos especiais desse pulsar, mas talvez nem sejam os modos mais altos e elegantes...

A mais disto, as coisas se conectam dentro do todo (hólon). E o que tenho chamado deuses nesta breve reflexão são, ao cabo, quiçá: campos de correlação causal, nada mais nem menos.

Enfim, a química profunda, por assim dizer, dos veludos e plumas que se viu ali, na avenida Marquês de Sapucaí, durante aquele desfile singular da União da Ilha, somada à dos símbolos imperiais ingleses, — estes, movendo elementos substanciais no âmbito do significado e do sentido —, tinha tudo para reagir com a infusão simpática tradicional do carnaval de modo agressivo, invasivo, convulsivo, antipático. E, enfim: contra-ditório, mal-dizente, mal-ditoso: maldito.

Foi o que se viu.

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Post scriptum: No dia seguinte ao dia em que fiz a anotação acima, fiquei sabendo que o Estandarte de Ouro de melhor desfile foi dado à Vila Isabel, uma escola, desde sempre, muito decentemente ligada às tradições do samba, e de índole progressista, que, entanto, fez também um carnaval internacionalista, consagrado à nossa irmandade cultural com Angola. Sem dúvida, as substâncias envolvidas são outras. Entre Angola, terra do semba, e o Rio de Janeiro, as festas em casa da Tia Ciata, onde tem origem o samba, há uma conexão natural a ser cantada poeticamente. Entanto, diante do quadro em questão, precisamos pensar sobre se vale a pena manter aberta essa porta ao internacionalismo na avenida da arte popular brasileira.

A apresentação da Vila Isabel, que eu não pude assistir inteira, agradou a todos e recebeu, este ano, também o prêmio Tamborim de Ouro, do jornal O Dia.

E, registre-se: a Globo, cujas conexões políticas, desde os anos de chumbo do Regime Contra-Revolucionário Estadunidense, dispensam comentários, não deixou de premiar de novo, neste mesmo carnaval de 2012, à União da Ilha do Governador, concedendo-lhe o Estandarte de Ouro de melhor comissão de frente... (Igor Buys; 23 de fevereiro de 2012).

1 – Vide breve entrevista da porta-bandeira: http://g1.globo.com/videos/t/g1/v/emocionada-porta-bandeira-passa-mal-no-desfile-da-portela/1820570/

2 – O castigo inexorável pela mão da natureza: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/carnaval/2012/videos/t/todos-os-videos/v/integrantes-da-uniao-da-ilha-passam-mal-durante-desfile/1822037/ .

Máscara originária do Congo

Máscara originária do Congo

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