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A TRAPAÇA NO REINO ANIMAL SEGUNDO UM DOCUMENTÁRIO IDEOLÓGICO LIBERAL DA NATIONAL GEOGRAFIC*

Abre o documentário o caso de uma ave, quiçá, uma espécie de galo selvagem, com uma crista eriçada à volta de todo o pescoço, à maneira de uma juba de leão.

Os machos fortes apresentam vistosas poupas, de cores escuras, e competem entre si pela preferência das fêmeas, exibindo tais equipamentos em danças de acasalamento.

Entrementes, há machos fracos, que ostentam cristas de cor branca, muito acentuadamente diferentes dos penachos dos fortes, como fossem de uma outra espécie até... Mas, no sentido estrito, biológico, não o são. [1] E, para usar da mesma expressão empregada no documentário, de amplo interesse filosófico e nítido teor ideológico liberal, estes últimos indivíduos são: trapaceiros.

Incapazes de competir no jogo franco da seleção sexual com os machos fortes, os fracos trapaceiros lançam mão de um expediente oportunista: enquanto os fortes executam os movimentos a que os instintos os chamam, profundamente enlevados, inebriadas pela química avassaladora dos hormônios, bem como se encontram as fêmeas que os observam e avaliam, o fraco oportunista, subitamente, se arroja sobre uma destas e força a cópula, garantindo, assim, a sobrevivência de seus caracteres. Se um dos machos fortes o percebe a tempo, pois a cópula das aves é muito rápida, surra brutalmente o macho fraco trapaceiro. Mas, não obstante, a genética do fraco impõe a sua permanência contra a lógica da evolução e à custa dos momentos de vacilo dos fortes.

O exemplo seguinte, no curso do documentário, é o de uma espécie de sapos que, tal como a ave descrita, comporta, de um lado, os fortes, os mais selecionáveis sexualmente, mais aptos à sobrevivência, maiores, mais dotados de toda sorte de atributos cobiçados pelas fêmeas, que os apreciam, por assim dizer, com os olhos da evolução; e, de outro lado, os fracos de um grupo especial em a natureza: o dos "trapaceiros", "ladrões", "vigaristas", "farsantes", só para usar, novamente, de alguns dos termos que são repetidos, inúmeras vezes, ao longo de todo o documentário ideológico liberal em questão.

O sapo fraco oportunista, então, bem como o galo inferior do exemplo acima, acompanha de perto a dança reprodutiva do forte que, se fora humano, diríamos: ignora o fraco por vaidade: por se entender admirado também por este na sua exibição do amplo papo e das emissões maduras que sabe projetar de um coaxar hipnótico para as fêmeas. E, no momento da distração, da boa-fé, sem a qual não existiria a perfídia -- e, portanto, o logro e o lucro teriam pouco ou nenhum ensejo: dá-se o assalto do fraco oportunista, que rapta a fêmea e garante, mais uma vez, a sobrevivência involutiva de seus caracteres genéticos inferiores.

Os próximos casos de "trapaceiros bem-sucedidos", mais uma expressão que ajuda a conformar a estrutura ideológica liberal desse impagável trabalho de cinematografia, são exemplos clássicos de aves, como cucos, que depositam seus ovos nos ninhos de outras espécies de aves para tê-los chocados por estas, bem como aos seus filhotes alimentados e protegidos, enquanto os verdadeiros pais economizam suas energias, na mais primeva via de exploração da força de trabalho alheia.

O filhote do cuco, ao deixar a casca do ovo antes dos filhotes do pássaro logrado por essa estratégia de sobrevivência, se remexe no ninho, instintivamente, lançando ao solo os ovos de seus infortunados irmãos postiços. Enorme em relação aos pais adotivos, muitos vezes mais pesado que estes, o filhote do cuco ainda será alimentado por regurgitação durante um longo período, até estar apto ao vôo.

Em seguida, vêm os insetos que dão a outros as suas próprias larvas para sustentar, como uma borboleta, altamente — especializada, cujo laroz cheira tal qual o de determinada formiga, de sorte que esta o recolhe e leva para o interior do formigueiro, onde será alimentado e protegido até se transformar em crisálida, e em borboleta.

Há, ainda, o exemplo de uma espécie de cobra dissimulada que, para se fazer de morta diante de outra cobra predadora, se contorce de modo espantoso; se revira, de barriga para cima, e até emite um odor de carne podre tão vivaz quanto a sua capacidade de mentir: de fabricar uma representação do real desconexa do real mesmo, ardilosamente, para garantir interesses seus.

Essas estratégias são chamadas, em dado momento, de inteligentes; no original em inglês, todavia, possivelmente se as diga "smarts" e não "intelligents", pois o atributo que se enaltece é, deveras: a esperteza, outro termo recorrente no documentário; ou a malícia, diria Platão, ao descrever, injustamente, os sofistas; mas não, propriamente, a inteligência, mensurável como Q.I..

"Smart" se traduz bem como esperto; e o esperto, o espertalhão, o vivaldino é, em suma, o — escroque, exatamente como sugere o documentário, tanto na nossa cultura como na cultura liberal: é o fraco oportunista, em sua condição emocional especial, com a qual procura superar a sua fraqueza. Não confundamos a esperteza, entretanto, com a dita inteligência emocional dos indivíduos humanos íntegros: nestes, é a compaixão, ou empatia de segundo grau, que se apresenta como forma especial de inteligência, possibilitando a convivência social harmônica, enquanto a "smartness", a inteligência liberal, por outro lado, é instrumento do egoísmo patológico e, em si mesma, uma outra morbidade.

O documentário termina, "mutatis mutandis", com a assertiva moral e utilitária seguinte: temos muito a aprender com esses seres, os espertos, os inteligentes no sentido liberal: os trapaceiros, os farsantes, os ladrões, os violentadores sexuais, afinal: os fracos oportunistas; pois suas estratégias de sobrevivências, — altamente especializadas, garante que sejam bem-sucedidos ao extremo no reino animal...

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Ressalte-se que o galo de crista branca é inexoravelmente mais fraco que o de crista escura; o trapaceiro não é “forte ao seu modo”, não descobriu um método universal para superar suas limitações, as transformando em força maior que a força, embora seja isso o que a ideologia liberal procura vender.

A fêmea possui aparato fisiológico eficaz na detecção dos traços do mais bem equipado para sobreviver, para obter alimento para os filhotes; do mais bem aparelhado para enfrentar predadores, doenças; do mais longevo, mais apto a liderar e conviver de modo salutar. E ela não seleciona o fraco, que, ratificando sua fraqueza, ao invés de a elidir, não respeita a seleção sexual, i.e., a Inteligência da evolução sobre o que -- deve ser, mas, ao contrário: passa por cima desse princípio natural, se valendo de um subterfúgio, de um atalho inusitado, de um: artifício.

Assim, o artifício em questão é elemento que deriva da fraqueza mesclada de oportunismo contra a genética e a força; contra, sobretudo, a ordem evolutiva, de modo a, inclusive, preservar caracteres contraproducentes do ponto-de-vista da evolução das espécies.

Ora, um dos distintivos do Ser humano -- i.e., o eu-coletivo, a nação e não os indivíduos humanos considerados como tais -- é, sem dúvida, a capacidade de criar artifícios para a sobrevivência e para a prevalência sobre animais fisicamente mais fortes, sobre o ambiente natural e as dificuldades em geral.

Por meio de ferramentas, técnicas e tecnologias, i.e., de artifícios, dominamos a natureza.

Entanto esse mecanismo traz um problema inerente, uma espiral autofágica patente: se, entre os indivíduos humanos, os fracos oportunistas continuarem sempre, indefinidamente, encontrando meios de suplantar os fortes, os saudáveis, de modo a impor sua genética e cultura, não estaremos regredindo em direção, novamente, às formas menos elegantes de vida? Precisamos utilizar as tecnologias, -- de educação, sobretudo --, para garantir o melhor aproveitamento possível das diferenças, rompendo a dinâmica cruel, selvagem da exclusão dos fracos; pois, no ambiente social humano, toda característica que amplie a multiplicidade, a — biodiversidade humana, pode e deve ser aproveitada como salutar à evolução da cultura.

As potencialidades individuais devem ser detectadas e direcionadas, desde a mais tenra idade, de sorte que os mais dotados para atividades específicas sejam encaminhados pelo Estado, no próprio processo de educação, para as desempenhar de preferência aos menos dotados naquele campo. No Estado soviético, porventura, não teria sido posto em prática um sistema de direcionamento vocacional em que talentos excepcionais, inclusive, para os esportes, eram detectados precocemente e tratados, desde logo, de forma diferenciada?... Trata-se de uma pergunta e não de uma afirmação o que se acaba de salientar.

Ora, todo indivíduo humano, por ser único e dotado de especialidades que o diferenciam de qualquer outro indivíduo, deve ser conduzido a somar esse capital precioso, que é a diversidade em si, para o seu sucesso pessoal e, na mesma medida, para o bem de todos.

Em suma: é de mister que as técnicas e tecnologias sejam empregadas com o escopo de catalisar a evolução individual e coletiva, e nunca a involução de quem quer que seja ou da sociedade. Os samurais, soldados da tradição cavalheiresca japonesa, são um bom exemplo de guerreiros fortes, o que inclui, inequivocamente, serem honrados, leais. Sua destreza na arte do combate com armas brancas, como a espada e o arco, é lendária.

Para batê-los em missões especiais, foi criada, então, a figura e a arte do shinobi: o espião trapaceiro, desleal.

Este não podia enfrentar um samurai no combate franco, mas sabia se valer da furtividade, da surpresa e de armas específicas para suplantar os oponentes mais fortes. O shinobi, por exemplo, carregava consigo, num continente, uma limalha de aço embebida em veneno a qual atirava aos olhos de um sentinela, antes de atacá-lo com sua espada retilínea e mais curta, desembainhada das costas, mais prática de portar e manusear que a espada cavalheiresca.

A espada na mão do samurai é uma ferramenta, um artifício da força; nas mãos do shinobi, um artifício da trapaça. Destarte, as ferramentas, as técnicas e as tecnologias podem ser catalisadoras tanto da evolução como da involução, como se propôs acima.

Era apodítico que se não podia ter um exército todo composto de espiões, pois sua arte não dava conta do mesmo tipo de misteres a que a arte cavalheiresca dos samurais se destinava; não se podia os ter a defender a nação: era preciso que houvesse guerreiros fortes e valorosos dispostos a isso. Não se podia ter um shinobi, um homem desleal, falso, inclemente, um assassino frio, mercenário e sem princípios no comando de um exército ou de um Estado, por exemplo; assim, o status social do trapaceiro sempre foi muito baixo e limitado.

O fundamento da trapaça sempre esteve presente, como opção, durante a vigência do regime da força, no Ocidente como no Oriente; todavia, seu papel nunca deixou de ser o de princípio subalterno da força mesma. Apenas com a queda do Antigo Regime, após as revoluções burguesas, a dinâmica da trapaça passa a governar o Ocidente, tendo a força, inversamente, como sua subalterna. Voltemos a essa assertiva adiante.

A natureza não abriga apenas a tendência evolutiva, como se vê, de preservação e apuro dos caracteres dos fortes; mas, outrossim, a tendência — involutiva, de preservação dos caracteres de certo grupo de fracos: os medíocres oportunistas.

Nietzsche avaliou como fortes os cavalheiros, os nobres, que passavam, de geração em geração, suas características genéticas e tradições atávicas, familiares (epigenéticas?).

Era um mundo que prestigiava a elegância, o brio, a alteza de valores, de condutas e sentimentos, identificados à nobreza.

Já o cristianismo, o pensador alemão prefere entender como involutivo, trazendo má consciência aos fortes em relação ao exercício da força mesma sobre os fracos; mas esta segunda parte de sua crítica precisa ser também criticada e testada a fundo.

O cristianismo dos nobres, que é o cristianismo romano, não é a mesma religião do pai de Nietzsche, tradição de sua família, a que este se opõe com vigor.

A Igreja sediada em Roma ensina o cristianismo da misericórdia, este valor que só pode ser afirmado pelos fortes: os fracos, os que estão vencidos, obviamente, não têm como exercer clemência, e esta é a primeira faceta da misericórdia.

A segunda faceta da misericórdia é a compaixão -- ou empatia de segundo grau --, mais desenvolvida nos seres que possuem um eu-coletivo, mas quiçá presente, em alguma medida, em todos os viventes.

A clemência no reino animal se verifica quando os vencedores, uma vez obtida sua vitória, são chamados pela evolução a não desperdiçarem energias próprias nem o recurso da vida em si, massacrando desnecessariamente os que se encontram em situação de inferioridade. Essa sorte de atos é baixa à luz dos instintos e da pragmática natural que os informa. Sim: a sobrevivência envolve, por força, uma pragmática, pois que é essencialmente agônica; e essa pragmática é completamente -- ascética, ou evolutiva: completamente dirigida à elegância e à fuga da brutalidade inútil, do desperdício e de tudo aquilo que os-homens assimilam, moralmente, como vaidades: como coisas vãs.

Só a apreensão dessa lógica natural nos faz capazes, inclusive, de perceber o que seja a elegância mesma, a nobreza, a alteza de propósitos e perspectivas. Neste sentido, o cristianismo dos fortes não é involutivo, muito ao contrário: se baseia, "in totum", na apreensão da linguagem natural em questão, abstraindo, como princípios sagrados, os cânones da evolução, nada mais nem menos.

Já o cristianismo mercantilista, concebido em apoio à empresa ideológica burguesa, de pôr o medíocre oportunista adiante do forte, este sistema, sim: deixa de recriminar a usura, como fazia a dogmática cristã originária, deixa de recriminar a mais-valia, ou seja: o roubo apoiado no logro, na mentira, na perfídia; e, em vertentes radicais -- ao menos, nestas -- chega a assumir o acúmulo ilimitado de propriedade, a riqueza -- tão malvista pelo Jesus bíblico --, e o sucesso no jogo da exploração como sinais da graça divina... Tal cristianismo é, pois, inequivocamente, uma doutrina involutiva e muitíssimo diferente, tanto do cristianismo originário, -- das igrejas originárias, às vezes, ditas comunistas -- como do cristianismo medievo, dos nobres.

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Existem, então, três tendências fundamentais em concurso na ordenação da História, como essa discussão nos permite flagrar: a força, a misericórdia e a trapaça. A força e a misericórdia cooperam com a evolução histórica; a trapaça é a forma pura da involução histórica.

A misericórdia, no âmbito humano, é visada pela razão e pelos instintos; na esfera instintivo-emocional, i.e., quando em bruto, há que se pôr reparo: não se confunde à compaixão.

Esta última é uma ferramenta de construção do eu-coletivo; uma adaptação da empatia -- de primeiro grau --, esta que, de início, é parte do aparato da cognição e voltada, precipuamente, ao aprendizado da linguagem compartida: eu me transporte ao lugar, ao tópos do outro a fim de quebrar a inescrutabilidade e relatividade da referência e, destarte, como relaciona os nomes às coisas: como pensa, como está a pensar no momento presente.

As formigas supracitadas, que salvam a larva da borboleta, depositada nas proximidades do formigueiro, porque o cheiro desta é especializado e imita o cheiro do laroz das próprias formigas; tais insetos experimentam compaixão por aquela criatura aparentemente perdida de sua sociedade, desprotegida, condenada.

E é com isso que a borboleta trapaceira conta: com a misericórdia da formiga como um ponto-fraco, um afrouxamento, uma distensão da força. Deveras, as formigas tendem a ser animais dotados de imensa capacidade de compaixão em relação, especificamente, aos membros de sua comunidade, seus semelhantes, e disso decorre serem tão capazes, outrossim, de autêntico altruísmo; i.e.: do instinto de sobrevivência poderosamente dirigido à dimensão coletiva do seu eu. Hajam vistas as pontes vivas que constroem esses fascinantes insetos sobre águas correntes para dar passagem à falange do formigueiro em marcha; pontes essas que vão desmoronando e sendo reconstruídas por tais seres, dotados, ainda, de intenso -- senso de dever: outro atributo relacionado ao aparato evolutivo da empatia de segundo grau, através de que se constitui toda forma de eu-coletivo.

Tais ferramentas naturais, que poderíamos julgar estritamente humanas -- a compaixão, o altruísmo, o senso de dever --, vale repetir para efeito de ênfase: estão relacionadas nas formigas à subsistência de um eu coletivo que, salvo engano, já supôs a ciência indutivo-experimental antes de nós, esses notáveis animais, sem dúvida, constituem.

Já nos leões, que, embora sociais, não chegam a constituir um eu-coletivo, a compaixão, para frisar, aparece como misericórdia de segundo grau e não como um segundo grau de empatia.

As abelhas, são outro grupo de insetos que constituem um eu-coletivo, e isso já foi um discutido e associado aos regimes utópicos, inclusive.

"O Homem", essa espécie individual conceitual que se transforma, num passo adiante, em sujeito individual, é uma ficção, um artifício, e, pior: do ponto-de-vista moral: uma mentira; a menos que se definisse "o Homem" como um ser da ordem da colméia, do formigueiro, e não da ordem da abelha solitária ou da formiga avulsa, as quais são de todo -- impensáveis.

Seqüestrado da sociedade, desde o nascimento, um “homem” não seria racional, pois não poderia propriamente raciocinar sem conhecer a linguagem compartida; não seria sequer -- bípede, vindo a caminhar, quiçá, como ilustram alguns casos concretos de crianças perdidas nos primeiros anos de vida e sobreviventes entre animais, sobre os pés e as mãos, quando muito. Pois, deveras, não podemos sequer imaginar o que seria um “homem” sem ter tido qualquer contato com humanos depois do parto e sem ter tido, outrossim, como se -- espelhar em outros seres vivos, que, por exemplo, se locomovam de quatro.

Vale conjecturar que se fosse mantido vivo através de... tubos, por extraterrestres, num experimento monstruoso, conhecendo apenas seres rastejantes, como ofídios, um humano potencial, quiçá — para não dizer por certo — rastejaria como as serpentes ao seu derredor... E, se os EETT mantivessem um outro humano potencial num viveiro onde jamais conhecesse qualquer sorte de ser vivo além de vegetais, possivelmente a triste cobaia sequer se moveria, preferindo se fixar ao solo, como a relva, para continuar recebendo seu alimento dos tais tubos, sem gasto inútil de energia. [3]

Eis a potência tremenda da empatia humana: essa capacidade de espelhar cada qual em si mesmo outros viventes, sobretudo outros indivíduos humanos -- quanto ao espelhamento de indivíduos não-humanos, o designamos: simpatia, do grego "sympátheia" --, e o quanto ela nos define e distingue. E é desse princípio, presente entre as formigas no grau de compaixão, i.e., como ferramenta de construção de um eu-coletivo, que, para frisar: a borboleta trapaceira e especialista se aproveita, com grande êxito.

Entanto a misericórdia, retornando um passo atrás, tem outra faceta já aludida. Apóia-se na pergunta que se faz o senso de praticidade inerente à evolução: para que obliterar ou fustigar os vencidos, desperdiçando os recursos (sagrados) da vida e as ferramentas naturais da sobrevivência? Essa pergunta trava a espada do forte, em dado momento, o chama à razão, com base na lógica da evolução, e rende ensejo, aí sim, no ápice do momento reflexivo, à possibilidade da compaixão em relação aos vencidos: de sentir o que sentem, se projetando à sua posição histórica, espaço-temporal, ao seu tópos e aos dos seus familiares, para se repugnar da idéia de os ferir, quando indefesos, quando vencidos, quando não mais a oferecer risco imediato.

Podemos, assim, falar em misericórdia de primeiro grau em humanos, como sinônimo de clemência, e em misericórdia de segundo grau, quando à clemência se some a compaixão. Assim, a compaixão nos humanos poderia, ao menos, em certos casos, ser fruto concomitante da misericórdia e da empatia, ambas elevadas ao seu estádio de paroxismo.

Não há espécie animal conhecida que experimente o impulso de destruir tudo quanto viva à sua volta apenas por ser forte o bastante para tanto; e se a força, enquanto princípio, inclinasse a essa sanha, ao invés de se acompanhar da contenção instintiva de si mesma que é a misericórdia de primeiro grau, a vida na Terra jamais teria chegado a se tornar possível...

O indivíduo incapaz de misericórdia em qualquer nível, não é um forte, mas um deficiente genético, que ameaça o equilíbrio natural da vida.

Se os mais fortes esmagassem os mais fracos por princípio, sem misericórdia, até o último, apenas para afirmar a sua superioridade, já se acabou de dizer: a vida, claramente, não seria possível. Se sempre matassem e acumulassem mais do que podem comer, idem.

Destarte, a natureza precisa comportar o fundamento em exame, de respeito e comedimento em relação à biodiversidade mesma.

O princípio da trapaça, entretanto, afronta esse arranjo, se valendo, como brecha para o oportunismo anti-evolutivo, patológico, da misericórdia, por exemplo, do galo forte, de crista escura, para com o galo fraco, de penacho branco. E este, incapaz de misericórdia em relação à fêmea, faz o que em a natureza poderia ser intuído por alguns como impossível: violenta o seu poder de escolha e o fundamento da seleção sexual.

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Na História da Cultura Ocidental, o Regime da Força, i.e., o regime que tem este princípio como base das relações entre nações e, como reflexo, das relações entre classes e mesmo, freqüentemente, entre indivíduos, corresponde ao período que vai do surgimento da escrita até a assimilação pelos romanos do cristianismo, no auge do império dos mais fortes. A Idade Média e a sociedade do "Corpus Christianum" representam a fase do Regime da Misericórdia, com este fundamento proposto como arqué do pacto social, embora tal modelo nunca tenha deixado de ser varado, de todos os lados, pelas tendências da força e da trapaça. Com as revoluções burgueses e a queda do Antigo Regime, em França e na Europa como um todo, bem como na América do Norte, tem início o regime que guarda a trapaça como essência da estrutura político-social e econômica, e que corresponde à Era da Involução, quando se constata o surgimento do necessariamente correlato — Império da Mediocridade.

A linguagem do regime da força esteve, desde sempre, muito ligada a determinados símbolos, entre os quais o leão tem um lugar destacado.

Os brasões da nobreza, símbolos das famílias dos fortes, ostentavam leões estilizados com grande freqüência; o imaginário dos antigos estava povoado de feitos míticos envolvendo estes felinos e criaturas formidáveis parcialmente leoninas. Héracles, que encarna a força dos dórios, e, mais além, dos helenos e dos ocidentais como nenhum outro herói, venceu o Leão de Neméia e carregava o couro invulnerável do animal sobre seus ombros, como proteção e blindagem, e a atestar a sua força. Ricardo, rei cruzado da Inglaterra, feroz, louco e questionável, mas também temido e respeitado, ficou conhecido pela alcunha "Coração de leão" ("Lionheart"), e por aí vai.

Deveras, o leão está em toda parte onde o sistema dos fortes impôs a sua marca, desde a Antigüidade até as revoluções burguesas, como animal-símbolo da força. Saliente-se que o Regime da Misericórdia é marcado por uma síntese entre o princípio da força (bruta) e o da misericórdia mesma, possibilitando um exercício mais comedido da força e, de certo modo, salvando o regime anterior da autofagia.

Já na Era da Involução, quando passa a imperar o princípio da trapaça sobre o da força, com a elisão radical do princípio da misericórdia, o leão é um tanto preterido, esquecido e relegado como signo no seio da linguagem.

A atmosfera psíquica do sistema burguês pede a eleição de novos animais-símbolo capazes de sintetizar esse modo de poder que os burgueses pretendem, por interesse próprio, propagandear como uma força além da força: a trapaça, e, no âmbito desta: a capacidade de jogar, i.e., de atuar num campo artificialmente regrado, tão-só para extrapolar as regras pactuadas, blefar, lograr, enganar até mesmo o mais dotado de inteligência formal, e arrancar, a unhas e dentes, a vantagem, o lucro, a mais-valia e a preponderância na ordem capitalista.

E um dos animais eleitos é o -- rato; outro é o cão e, como suave variação deste, vale destacar mais um canídeo: o chacal.

Os mais destemidos combatentes norte-americanos do Vietnã, que adentravam por subterrâneos escuros à caça de inimigos, por vezes, como se conta, munidos apenas da pistola Colt .45, modelo 1911, legado de João Browning, então, arma padrão das forças armadas estadunidenses, eram apelidados — "tunnel rats" ("ratos de túnel"). Ou seja: o que poderia soar terrivelmente desonroso entre os cavaleiros cristãos do passado já não tem mais o mesmo peso e conotação.

Militares experientes, selvagens e impertérritos em geral, com o aval de Frederico Forsyth, são chamados, hodiernamente: cães de guerra. Os matadores altamente treinados do serviço de inteligência estadunidense são ditos, -- quando menos, pela própria propaganda de guerra veiculada como cinema -- chacais (jackels).

Hitler, que não era favorável ao sistema burguês, mas respirou os ares do mundo capitalista, conquanto enaltecendo a era dos fortes, dos cavaleiros teutônicos, dos heróis da mitologia germânica, não elege para seu símbolo o leão, o tigre, o urso, mas, ora: o — lobo: seu quartel-general era chamado, "Toca do Lobo" ("Wolfsschanze").

O cão, entre os gregos, era um animal sacrifical usado para aplacar as divindades ctônicas; era carbonizado, deixado em encruzilhadas ou enterrado, uma das razões por que foi associado, desde há muito, ao próprio Hades e, um passo adiante, ao diabo, o — cão dos infernos.

O cão gozava, assim, do mesmo tipo de reputação atribuída, hoje, ao bode preto, ou à cobra: a de criatura afeita ao sombrio, ao sinistro, ao malfazejo.

Como a cobra, e mesmo o rato, o cão, sobretudo naqueles dias, rodeava as cidades, e era um animal perigoso, imprevisível, sub-reptício, traiçoeiro. Provavelmente, atacava e desfigurava os cadáveres humanos deixados ao léu, como ocorre, até hoje, em áreas de guerra, em comunidades muito carentes e em povoações situadas à beira de florestas mundo afora.

Ademais, o cão é trapaceiro, dissimulado; oscila momentos de covardia extrema com demonstrações de intensa ferocidade; emite ganidos frágeis, quando se arroja sobre ele um agressor, depois, afeta submissão e, diante de eventual distração deste, avança e dá a ver que está disposto a tudo para -- sobreviver.

O rato, bem assim, é um "vencedor" na ótica burguesa: um animal que, segundo alguns, sobreviveria ao holocausto termonuclear, em companhia apenas das baratas; também tende a correr e fugir, diante de ameaças, mas, se encurralado, transvasa toda a sua agressividade e capacidade de violência.

No nível psíquico, o cão, o rato e o chacal são o mesmo símbolo, deveras.

E esse símbolo do tipo de potência que o sistema burguês cultiva, -- ou seja: da trapaça dentro do universo regrado, como um tabuleiro de jogatina, da sociedade, apenas para ter essas mesmas regras "bem" burladas --; tal símbolo está, de novo, como já esteve o leão, em toda parte, substituindo o grande felino e outras criaturas orgulhosas e colossais, hoje vistas como ultrapassadas, pesadas, dependentes de enorme quantidade de alimento e de condições especialíssimas de vida para sua subsistência.

Plácido ao centro de seu mundo e de sua sociedade, o leão reinava -- aparentemente -- sem esforço, emitindo o seu estrondo, que reverbera por oito quilômetros dentro da savana, para fazer lembrar que nada é forte o bastante para o enfrentar. Ao menos, não no combate franco, frontalmente. Mas os burgueses não pretendem ser esses colossos, senão, como tanto repetem em relação àqueles que admiram: sobreviventes.

Para negar a misericórdia, também é comum entre as pessoas que vivem sob o sistema burguês, assimilando o liberalismo no nível moral e psíquico, o dizerem: eu não sou santo, não sou perfeito -- nem pretendo me aproximar da santidade, da perfeição ou da piedade, está implícito --; eu faço o que tenho que fazer ("I do what I have to do") para garantir o que puder para mim, sem limites, e sobreviver no universo do "ágon" involutivo.

A inteligência do rato, ou do cão deve dirigir seus cultores a utilizarem a potência da adulação e obediência caninas em relação... aos fortes; ou, senão aos autênticos fortes, aos que estejam em posição atual de superioridade. Deve dirigi-los àquele recuo esganiçado, desarticulado, com semostração de fraqueza já mencionado; e os conduzir ao ataque sub-reptício, à "Blitzkrieg": à "guerra total", sem prévia declaração formal: à ferocidade sem garbo, sem ostentação de virtudes morais e éticas inúteis, obsoletas, e medida de modo a obter apenas o êxito concreto: a vantagem, o ganho.

Reflexão, inteligência propriamente dita, aprofundamento, refinamento, gostos clássicos, sofisticação: tudo isso deve ser posto de lado em prol do pragmatismo ao modo liberal, que pede: informalidade, simplicidade, muito mais ação e reação que brilho ou pensamento.

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O que realmente distingue os-homens dos demais seres vivos não é, obviamente, como possam querer alguns, a trapaça no jogo, repetimos: a inteligência do rato; nem, tão-pouco, com toda certeza, o pendor para o jogo: o ambiente maliciosamente regrado, criado a fim apenas de ensejar a trapaça contra o mais forte; não é nem mesmo a inteligência propriamente dita, mas, com já muito frisado, a: linguagem compartida, que nos permite o acúmulo do conhecimento através das gerações, e esta, -- aqui entra a nossa intervenção: depende da peculiar forma de inteligência, digamos, pré-verbal chamada: empatia.

Mamíferos marinhos, como os golfinhos e as baleias, são muito inteligentes; bem assim, segundo alguns, as deslumbrantes sépias; mas nenhum desses seres, -- ainda que até mesmo se comuniquem muito bem e, de modo altamente sofisticado, entre si, funda uma cultura, acumulando as experiências individuais e o saber adquirido.

A cultura é a linguagem compartida, ou os seus objetos sempiternizados em -- universais, para lançar mão de um termo do passado; já os-homens, ou o sujeito coletivo da História da Cultura, são essa mesma linguagem, na sua dimensão subjetivada.

Destarte, somos superiores aos mamíferos marinhos e às sépias, principalmente, porque possuímos um eu-coletivo, construído a partir de processos empáticos, de sorte que, apartados da sociedade, já foi dito de passagem, não somos sequer bípedes -- mesmo esse atributo é cultural -- e não demonstramos inteligência que sobrepuje a daqueles notáveis animais.

Temos isso: um eu-coletivo, em comum com as abelhas e as formigas; embora não sejamos insetos, como não somos, tão-pouco, feras, leões, tigres, nem, com certeza, ratos e cães. O nosso pendor para espelhar outros seres, somatizando seus caracteres, nos tem levado, desde há muito, a erigir uma antropozoomorfia constante, presente nos mitos, nos símbolos e nos hábitos. Talvez, Santos Dumont não tivesse inventado o avião, se não fosse capaz de experimentar simpatia ("sympátheia") em relação aos pássaros...

Devemos, pois, repensar o mundo, tendo como fundamento primeiro a nossa própria forma fundamental: a de criaturas capazes de projeção racional e mimese, -- i.e., de inteligência empática --, através do que constituímos uma natureza dual: individual-coletiva.

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Pensar um sistema político-social radicalmente humano, ou, dito de outro modo: antropomórfico, importa em valorizar sobre a força e sobre a misericórdia, enquanto piedade e caridade -- esses refinamentos da clemência dos fortes sobre os fracos, presente em toda animália, já se disse -- a outra faceta da mesma misericórdia, de grau mais alto, a qual é estruturalmente distintiva do humano: a compaixão.

Esta não tem outra serventia, senão a de ser a ferramenta hábil e natural na construção do eu-coletivo, do indivíduo cultural, ainda uma vez: a nação.

Racionalizada, a compaixão ganha a feição de -- solidariedade. E, na construção de uma perspectiva solidária atualizada, verificamos, inelutavelmente, que a concorrência como princípio basilar de um sistema é tão desnecessária quanto maléfica e degenerativa para os-homens.

Consiste na mais pura barbárie a noção de que devemos competir entre nós, nos esgrimindo e trapaceando mutuamente, de modo voluntário ou involuntário, ao movermos as alavancas impostas da involução, terrível e dantescamente confundidas ao trabalho nesta época, para sobrevivermos individualmente, ao invés de colaborarmos, de cooperarmos pelo bem-estar individual e geral.

A competição tem gerado um desperdício de energia incomensurável e imposto injustiças aos seres humanos -- refrisando: às nações -- num nível tal como nunca se viu antes, durante os Regimes da Força ou da Misericórdia.

Toda utopia chã e defensável como modelo a ser concretizado deve, enfim, ser pensada em relação a um povo determinado, tendo em conta a natureza do pacto social sobre que se apóia; entanto, se há um cânon que pode chegar a estar presente em todo sistema utópico que chegue a merecer a nossa defesa, este será o de ser concebido como doutrina de solidariedade e cooperação com vistas à ascese da Inteligência através do humano e ao fim do sistema de exploração, do Império da Mediocridade e da Era da Involução.

Igor Buys

02-07 de junho de 2012

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*Série, ou programa "Planeta Nat Geo"; episódio "Truques da Natureza".

1 - Esses machos, de penacho branco, me ocorre, podem ser, quiçá, apenas muito mais jovens que os de crista escura, mas isto não é explicado.

2 - O que criticamos, nós mesmos, frontalmente, no cristianismo romano, ou católico está embutido neste último adjetivo: católico (katholikós): universal, para todos; mas esta é uma outra discussão.

3 - Essa conjetura aparece várias vezes na minha poética, como frisado recentemente, e acaba recebendo, em dado momento, o título de "Mito do Homo Ferus".

Foto de origem desconhecida até o momento

A Trapaça no Reino Animal... Igor Buys.jpg

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