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DENSIDADE E SUTILEZA – SEGUNDO PASSO

1 - O senso comum descreve o que se situa AÍ, no campo dos fantasmas, como denso; e à essência, o que está sito AQUI, como da ordem da sutileza.

2 - Aliás, ainda não dissemos, mas a essência está posta AQUI, ou PARA AQUÉM do espaço-tempo, do agregado sensível, e, outrossim, PARA ALÉM daí.

3 - Há um transcendente interno e há um transcendente externo — ao eu. E entre este e aquele, o campo do transcendental, pré-mundano, e o mundo.

4 - Ao mundo, para usar dum termo clássico, também podemos chamar — o outro. Então, dizia-se: o senso comum entende o mundo, o outro como denso.

5 - Porém, hoje, se pode, por meio da linguagem da ciência indutivo-experimental, catastrofar tal noção e provar como é delgada, sutil a imagem.

6 - Quando se olha para o céu, se vê estrelas, segundo tal linguagem, imensamente distantes no espaço e no tempo, muitas, inclusive, já: mortas.

7 - É poeticamente nostálgica a idéia de estrelas mortas. O céu seria, pois, uma colcha de retalhos do tempo. Mas este gabinete não é diferente.

8 - Neste cômodo onde me acho, a luz também viaja no espaço e tempo. De sorte que o cachimbo sobre a mesa é mais moderno que o aquário à frente.

9 - As distâncias são relativamente ínfimas, mas, tal como no céu, tudo habita em tempos vários. A porta é dez vezes mais antiga que o cachimbo.

10 - A luz que toca o sorriso da namorada viaja no espaço e no tempo até que me afete; e, quando me chega, é mais moderna que a imagem de seu pé.

11 - Ora, se algumas estrelas estão mortas porque se já modificaram quando a luz que emitiram me atinge, o amor, o sorriso e a flor também estão.

12 - A composição físico-química de tudo estaria em mutação implacável, permanente. E as afetações do entorno são recebidas sempre com um atraso.

13 - Se ponho a mão sobre o tampo da mesa, tenho uma imagem tátil desta. Tal imagem, diz a ciência, percorre meu braço, nervos, sinapses e volta.

14 - Volta a partir do cérebro até minha mão. Onde, enfim se forma. Depois de codificada e decodificada por linguagens internas do corpo: eis AÍ.

15 - A imagem tátil da mesa. Bem assim, sua imagem visual. E a imagem auditiva que obtenho batendo sobre seu tampo: tudo tão rarefeito, ou sutil.

16 - Tudo tão volátil e ficcional. Tudo perfeitamente suposto, ou poético. Poiesis significa criação: produção do que é, a partir do que não era.

17 - Ora, a imagem gustativa do fruto que mordo não precede a minha experiência. Ao contrário: é criada por esta. E não é o fruto mesmo ou em si.

18 - Nitidamente, consoante a linguagem da ciência hodierna, todo o agregado sensível é diverso do em-si das coisas: pura abstração dos sentidos.

19 - Habitamos um mundo abstrato e um tempo que nada tem de absoluto, como queria Newton: é uma colagem de relatividades ajuntadas. Estão mortas?

20 - Ou estarão mais vivos, esses fantasmas referidos, do que as estrelas ditas mortas no firmamento? Surge a questão do astronômico e do ínfimo.

21 - Ora, o grande e o pequeno definem-se por oposição que diremos diádica ou caótica. Por que caótica? Porque se não pode pensar um sem o outro.

22 - O quente só é o quente em oposição ao frio; o claro ao escuro. O ínfimo ao astronômico. Alguns físicos-poetas antigos os diziam: contrários.

23 - As contrariedades, entanto, são o primeiro vislumbre de densidade com que nos deparamos neste discurso. Formam um: átomo infrangível, denso.

24 - Podemos batizar esse átomo, essa partícula do real de — Yin-Yang. Na lógica do poeta Parmênides e na de Kant, isso se explica como se segue.

25 - A = A, diz Parmênides. Logo A + (- A) = 0 e A = - (- A). Ou: A é não não-A, ensina Kant. O frio somado a seu contrário, o quente, se anulam.

26 - Mas o frio só é o frio, e o quente só é o quente, por se anularem e se definirem; se definirem e se já anularem, numa espécie de — pulsação.

27 - O grande e o pequeno, outro par xifópago, constitui uma unidade pulsante, muito densa, se repelindo e atraindo — violenta e incessantemente.

28 - Voltando a este gabinete, à sua analogia com o céu, se são matematicamente grandes-pequenas, astronômico-ínfimas as distâncias, algo é fato.

29 - Matematicamente, a porta ainda permanece sendo dez vezes mais antiga que o cachimbo sobre a mesa, quando me afetam os sentidos, uma e outro.

30 - O tempo e o mundo que sobre sua estrutura se constitui ainda é de urdidura um tanto fugitiva..., ficta, esgarçada ou precária, enfim: sutil.

Igor Buys

2016

Reprodução: Magritte; "Os Amantes"

René Magritte

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