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SÍNDROME DE MACUNAÍMA

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Macunaíma, o herói sem nenhum caráter de Mário de Andrade, representa tanto a adesão como a rejeição, concomitantes no psiquismo brasileiro, à lógica burguesa, que é a lógica do capitalismo, da mais-valia, da trapaça e traição do semelhante, com toda a carga que comporta de negação da moral cristã e do romantismo inerente ao regime senhorial, fundamentos estes sobre os quais foi alicerçada a nossa identidade, desde o nascedouro.

O autor do livro não apenas concebe o Macunaíma como instrumento seu de crítica, senão que o diagnostica parte de um self coletivo culpado. Dilema de um povo que chega a desejar ser “smart” (esperto ou escroque) qual supõe que o sejam os businessmen estadunidenses, sobretudo, mas também os ingleses e europeus em geral, para, destarte, adaptar-se aos tempos atuais, ao mundo afora de suas fronteiras; mas, ao mesmo tempo, olha com reprovação e má consciência para a sua imagem especular embebida de tais aspirações ou empenhada já em as concretizar. E eis que essa imagem especular, encarnada no Macunaíma — pois tal criatura é anterior à ficção de Mário de Andrade e captada pelo escritor como Doppelgänger e alter ego nacional — se desvenda, a si própria, capaz de obter vantagens sobre os outros, de trabalhar menos e ganhar mais, agindo — dir-se-ia, com fulcro na educação ética jesuítica — preguiçosamente, tomando o dinheiro, o lucro como princípio da ação, em lugar da virtude, que o regime senhorial traduz em honra.

Ora, a honra qual a preceitua a nossa tradição moral, encetada pela obra dos missionários jesuítas, é aquela dura honra filtrada na autocensura em relação ao exercício livre da força e direcionada à cordialidade e à gentileza como emblemas da misericórdia, esta que assumira o lugar natural da altivez. Não se trata apenas da honra como se a conheceu na Antigüidade, a virtude pura dos fortes, parelha com os instintos básicos de qualquer singelo animal de rapina. Trata-se, sim, da honra dos fortes misericordiosos, valor sintético, que traduz a acomodação paulatina dos elementos morais do Regime da Força (vide A TRAPAÇA NO REINO ANIMAL SEGUNDO UM DOCUMENTÁRIO IDEOLÓGICO DA NATIONAL GEOGRAFIC) mesclados aos princípios do cristianismo para dar no modelo senhorial feudal de valores, que sobrevive ao Absolutismo, sobrevive às revoluções burguesas e permanece presente entre nós, em alguma medida, como base da nossa cultura moral, até os dias de hoje.

Um esporte oriundo da Europa teve papel destacado na definição que o mundo compôs do Brasil e dos brasileiros no século passado: o futebol. O País do futebol, o País da bola: assim nos diriam, de fora para dentro, e assim, em contrapartida, nos diríamos também, de dentro para fora.

Ora, o futebol, antes de qualquer outra coisa, é um jogo; e um jogo surgido na Grã-Bretanha, país onde também surge o liberalismo, esteio conceitual do capitalismo, de que se deriva uma moral utilitarista, direcionada a validar a intervenção sobre a autodeterminação alheia, i.e., a violência, esta que é inerente, inclusive, ao logro, à perfídia, ao lucro, aos fundamentos primeiros da exploração.

Reinventado, em larga medida, no Brasil, o futebol teve somadas aos seus fundamentos, de um lado, a ginga brasileira, e, de outro, certa mescla de malícia e criatividade que permite a improvisação sobre as lacunas das regras como recurso especial para produzir inovações acaçapantes, sem, no mais das vezes, incorrer em extrapolação do limiar da legalidade.

A ginga brasileira, um atributo físico, transbordava dos dribles estonteantes do Mané Garrincha, nos anos de 1950 e 1960, e assombrava o mundo. Já a “maldade”, no sentido aproximado de argúcia malevolente, de esperteza, um recurso entre anímico e intelectual, próximo da inteligência emocional, se fez sentir, por exemplo, emblematicamente, durante a Copa do Mundo de 1974, quando Jairzinho se posiciona na barreira do time adversário, antes da cobrança de uma falta pelo craque Rivelino, para abaixar-se, no instante exato em que o companheiro de camisa canarinho chuta a bola precisamente em sua direção. Tornou-se comum, depois disso, e até pouco preocupante para os goleiros, que jogadores do time adversário participem das barreiras nas cobranças de falta, desde que não em posição muito estratégica, mas, naquele momento, o efeito foi de todo avassalador. Havia muito bom humor naquilo; tratava-se de uma apreensão eminentemente alegre e, inclusive neste sentido, deveras inteligente dos problemas, dos obstáculos a superar. E era mais até que uma atitude mental; tratava-se de uma lógica especial, de um modo de inteligir e processar intelectualmente tudo aquilo que separa a vontade de uma meta.

Aqui, antes de prosseguirmos, se faz necessária uma breve digressão. Num filme estadunidense para jovens, intitulado Jovens Bruxas (The Craft), quatro moças entram numa loja de produtos wiccanos e começam a furtar mercadorias. Uma das moças, então, questiona as demais, obtendo a seguinte explicação para aquele procedimento: Everything in nature steals. Big animals steal from little animals and we steal from them. A resposta é naturalista porque a Wicca é uma religião que se volta à canalização das forças da natureza; entanto se trata também, e sobretudo, de uma resposta ideológica liberal. Em outro filme hollywoodiano, este uma comédia romântica, e intensamente romântica, intitulada Mergulho em uma paixão (Wild hearts can't be broken), na cena em que os jovens protagonistas do par amoroso central se encontram, o rapaz quase é linchado por estar roubando no jogo. Entanto, antes de o revistarem à procura de uma carta que trazia escondida no chapéu, esta cai ao chão. A adolescente por quem ele se apaixonaria, então, pisa em cima da carta, bem rapidamente, a ocultando e salvando seu futuro amor da fúria dos ludibriados. Ora, o rapaz é um bom caráter na história; trata-se, deveras, do típico mocinho: o fato de roubar no carteado, a ponto de esconder trunfos na vestimenta, não desdoura a sua figura em nada. Roubar é natural dentro da ideologia que os anglófonos compartilham no mundo atual; e roubar ousada e eficientemente, mormente num esporte coletivo que é também, cumulativamente, um jogo, demonstra superioridade de caráter e mesmo virtude moral para eles; além de significar um fundo engajamento na dinâmica essencial da natureza, ou de uma parte desta, a dos — medianos esforçados, agressivamente oportunistas, de entre os quais surgem os vencedores no universo do capitalismo.

E dito isso, consignemos que a malícia brasileira também informava a catimba: o delongar deliberado das formalidades do jogo, com o intuito de gastar tempo de modo lucrativo para o time. O craque — palavra derivada do inglês crack, er — é um indivíduo que, além de habilidoso em relação aos fundamentos do jogo, ainda é capaz, em momentos críticos, para salvar seu time da derrota, de, por exemplo, empurrar a bola com uma “mão invisível”, sorrateira, para dentro da meta, sem que o juiz o perceba para anular o gol e marcar a falta. O craque pleno, quando atacante, sabe até bater nos seus marcadores mais duros sem ser flagrado e penalizado, ou os travar, lhes segurando pelos calções, disfarçadamente, sendo que os brasileiros, em todos esses atributos, são os inventores, ou os reconstrutores da própria noção de craque. Em função disso, tudo que fazem os nossos jogadores em campo, do modo como jogam à forma emocionada como comemoram os gols, abraçando-se coletivamente em arroubo, e, por vezes, encenando coreografias; tudo isso foi francamente imitado no estrangeiro, onde, hoje, se joga, universalmente, um futebol marcado por forte e evidente sotaque brasileiro.

Para os liberais ingleses e norte-americanos é, decerto, dorida e fundamente embaraçosa a constatação de que os tupiniquins, por força de influxos surpreendentes e, até então, desconhecidos, emanados de sua cultura miscigenada, têm — imensamente maior domínio que eles de tudo aquilo que, durante uma partida de football, o esporte nacional inglês, jogo de estratégia e simulacro da batalha comercial moderna, conduz à prevalência cabal e à vitória...

Entanto a malandragem, a esperteza e a plasticidade com que os nossos craques se impõem sobre os representantes de outros povos nos campos de futebol do século XX, se é motivo de orgulho nacional nos momentos em que o País se dá a vibrar com a paixão da bola, também merece dos filhos deste solo e Pátria Mãe gentil certo desdém e conflito existencial. Dirão alguns em tom severamente autocrítico: os brasileiros só querem saber de correr atrás de uma bola, exibindo todo o seu molejo alegre, os seus malabarismos macunaímicos. Futebol, carnaval e praia, dirão ainda: malevolência, desfrute e indolência: disso vive o nosso povo! E, de súbito, o que era uma potência criadora, ferramenta de superação de obstáculos e de vitória sobre as respostas parcas, os quadris duros, a falta de gênio e de jeito dos gringos em relação aos mesmos desafios, volve a defeito cultural-genético, e já motiva meneios de cabeça e assunções incongruentes para não dizer neuroticamente pessimistas.

O que se verifica, então, é — a Síndrome de Macunaíma.

E é sobre esse conflito anímico pátrio que arregaçarão as mangas e trabalharão as agências estatais estrangeiras, no sentido de minar, em vôos mais altos que o do desporto, o exercício pelo nosso povo da potência em questão, qual seja: a fúria de driblar obstáculos, logrando, desarticulando, se valendo de respostas rápidas e de muita improvisação, para se dirigir, obstinada e vitoriosamente, a um: goal. De fácil detecção pelos inimigos do Brasil, a Síndrome de Macunaíma constituiu-se no vero calcanhar de Aquiles do gigante auriverde, o qual cumpre refrear no seu despertar para o conhecimento da própria força a qualquer preço.

Igor Buys

24 de agosto de 2012

Tarsila do Amaral; Batizado de Macunaíma

Tarsila do Amaral; Batizado de Macunaíma

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