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O FILHO DE ASMODEU

Foi numa manhã ensoralada de outono... Borboletas com asas de vitral brincavam enamoradas sobre os jardins pulverizados de flores que se abriam como lábios em beijos de todas as cores... A luz da manhã acariciava a pele num afago morno e suave, como suave era também a bruma que expirava do mar... Sim, foi numa manhã assim que o carteiro, pessoa bastante conhecida dos seguranças e empregados da casa, com aquele seu eterno sorriso, que eu costumava testemunhar dos jardins em meus passeios e momentos de leitura por ali, trouxe às minhas mãos... às minhas próprias mãos... a primeira carta... a primeira carta... a primeira carta do Filho de ASMODEU.

Lembro-me do instante exato em que a puxei de entre os dedos do carteiro, antes que ele a pusesse na caixa de correspondências... aquela linda caixa de correspondências feita por uma artista plástica em madeira, com o formato de uma casinha em miniatura, um pequenino regador de metal, vasinhos de flores e até um sapinho pintado de verde e um coração algo excessivo sobre o batente da portinha de entrada onde se liam os nomes de meu marido e o meu... Lembro-me do instante exato em que meus dedos pinçaram o envelope amornado pelo sol outonal e o retiraram de entre os dedos daquele homem bom, sempre disposto a um sorriso e uma frase de otimismo e cordialidade que findava infalivelmente com a exclamação — “fiquem com Deus!”... fiquem com Deus... com Deus... Deus... Deus...

Tudo em nossas vidas era tão perfeito até então; tínhamos nos mudado há poucos meses para aquele local reservado e adorável, onde a natureza convivia de forma tão harmoniosa com os seres humanos; a casa era ampla, tínhamos dezessete empregados bem alojados em dependências anexas; as crianças estudavam no Centro e o motorista oficial as trazia no carro do pai, seguras, lindas e tão confiantes na vida, tão despreocupadas de tudo, do porvir, do presente, das coisas ocultas e horrendas deste mundo... O mar se abria imenso para além do jardim... A rodovia passava abaixo, entre o paredão rochoso que a sustentava e que confinava com o oceano, mais abaixo ainda. A colina recoberta de grama se curvava até a rua de paralelepípedos, em frente à entrada.

Aquele tempo merece ser lembrado, mesmo até o último momento antes de aquelas palavras amaldiçoadas entrarem em nossas vidas, em nossas mentes, corações e almas...

Passei a palma da mão sobre um banco de pedra do jardim, senti o tato da pequena quantidade de areia que havia sobre esse banco, roçando a minha pele, docemente... Limpei o assento com cuidado antes de me sentar e, enfim, abri o envelope endereçado a mim e comecei a ler a carta... a carta cujo texto, cada qual de suas sílabas e letras, cada qual de suas vírgulas e pontos, imprimiram-se na minha mente de algum modo... de algum modo que, até hoje, não sei explicar...

Prostituta da Babilônia reencarnada.

Fica ciente de que a casa onde estás morando foi consagrada, em missas negras, aos demos Aschtaroth e Behemoth. Nela há restos de animais sacrificados em rituais de Alta Magia Negra, presentes de sangue que incluem vísceras de seres humanos, insolentes e degenerados. Se desejares, escava o solo sob teus pés e procura por essas coisas, tu as encontrarás. Faze isso, se assim o desejares.

Deixa que a tua mente, coração e alma repitam, silenciosamente, esta oração: “vinde a mim, vinde a mim, vinde a mim, ó Satanás”. Em todos os momentos do teu dia, e mesmo durante o sono, repete essas palavras em tua mente, coração e alma. Faze isso, de livre e espontânea vontade, se assim o desejares.

Consagra os teus alimentos e a tua bebida. Sempre, ao comer ou beber, proclama em tua mente, coração e alma: “isso é o teu corpo, ó Satanás” e “isso é o teu sangue, ó Satanás!” Faze isso, de livre e espontânea vontade, conforme o teu livre-arbítrio.

Visualiza a cabeça decepada do Mago Branco à tua frente. Mentaliza-a no vaso sanitário; defeca sobre ela! Escarnece do Mago Branco; dize coisas sujas sobre ele em sua mente, coração e alma, se assim o desejares. Ouve as gargalhadas que se expandem do teu coração! Usa a tua própria imaginação para encontrares as palavras e extravasa o teu ódio pelo Mago Eunuco do modo que desejares, apóstata!

Visita à cena do martírio dele durante o sono e pelo resto do teu dia, sempre que desejares; escarnece do Mago Branco, faze troça da sua dor, do seu ridículo sofrimento, escarra sobre ele, chuta o baú de bronze sobre os seus ombros, usa a tua criatividade, humilha-o da forma que desejares e se, apenas se, assim, o desejares. Sevicia-o com brutalidade em companhia dos teus entes mais próximos e queridos; faze isso em tua mente, coração e alma; vê a todos como um bando de faunos e sátiros, com pés de bode e olhos de fogo, seviciando-o brutal e extasiadamente, torturando-o e humilhando-o alegremente, conforme o teu desejo carnal de fazê-lo e a tua própria criatividade. Cria, apóstata, cria! Ouve as gargalhadas que se expandem do teu coração! Libera o teu ódio contra o Mago Eunuco! Faze tudo isso dentro dos templos, diante das imagens ditas sagradas e toda vez que vires o símbolo da sua dor ou tocar o papiro das suas mentiras! Faze a ceia na casa do Mago Branco todos os dias, repetindo a primeira oração: “isto é o teu corpo, ó Satanás!”.

Imagina todas as crianças envoltas por serpentes. Vê e sente as serpentes escamosas, deslizando sobre seus corpos. Nunca mais olha para uma criança ou pensa em qualquer uma delas sem fazer esse exercício de Alquimia Negra, se assim o desejares, apóstata.

Sente ódio de mim, apóstata, senta ódio no teu coração! O ódio adestra no ódio. Imagina e sente o teu coração transpassado e envolto por uma luz negra. Sente também que uma serpente escamosa envolve e pressiona o teu coração. Sente isso agora, apóstata!

Proclama-te agora: apóstata do Anti-Cristo! Glorifica-O, prostituta, e exalta-te a ti mesma por isso! Tu foste transformada num Golen Negro, cadela da Babilônia! Isto é Chochmá Nisteret! Isto é Alta Magia Negra!

Que ANDRAS e ALOCER, servos de meu Pai; que o Exu das madrugadas, o Senhor das Sete Encruzas, estejam ao teu lado e sob tua cabeça em cada passo dos teus caminhos, meu Golen Negro, apóstata voluntário e consciente do Anti-Cristo, prostituta sórdida da Babilônia! Que ouça já as gargalhadas do teu coração!

Assinado:

O filho de ASMODEU.

Era uma brincadeira de incrível mau gosto, sem dúvida! Uma coisa que só poderia advir da mente doentia de uma pessoa profundamente infeliz e desorientada... ou pelos menos, foi isso o que me lembro de ter pensado, então. Soubesse eu das conseqüências, tivesse eu recebido a graça de que um anjo do Senhor me soprasse nos ouvidos e me demovesse a tempo de fazê-lo, pudesse eu prever... meu, Deus, tudo o que sucederia este ato, jamais teria lido até o fim e muito menos passado aquela carta, aquela coisa amaldiçoada às mãos de William.

Mas os céus não intervieram em nosso favor e, tolamente, eu fui direto para dentro da casa, ao encontro de meu marido, para entregar-lhe... aquilo. “William”, gritei, “William, veja, querido, veja o mal-gosto dessa coisa nojenta que remeteram para mim, meu Deus!... Quem escreveria isso?... E por quê?... Por que dirigido a mim?” Chorei. William me abraçou, pegou a carta das minhas mãos, acendeu o seu cachimbo e sentou-se para lê-la.

Posso rever cada uma das expressões que se imprimiram no seu rosto, conforme ele ia lendo o texto e tragando aquelas palavras doentias com desprezo, asco, indignação, revolta e, finalmente, — fúria. “Maldito bastardo”, ele bradou, bradou e se pôs de pé. “Enviar uma coisa nauseabunda dessas para a minha mulher!” Deu dois passos para esquerda, e mais dois passos para a direita. “Quem, quem, em nome de Deus, se atreveu...” E, então, olhou para mim e se conteve; tornou a me abraçar, dizendo que eu não deveria ficar assustada com aquela tolice, era uma coisa dirigida a ele, que era um homem público, amado e odiado, como todo homem público; era uma coisa dirigida a ele e não a mim. “Pronto, já passou, eu vou mandar investigar a procedência disso agora mesmo, não se preocupe com nada, Giovanna, meu anjo louro, com nada”. William sempre soube como me fazer sentir segura, amparada, protegida.

Olhei para o seu rosto e o seu sorriso me fez sorrir de volta: tudo estaria sob controle em poucos minutos. William apanhou o telefone mais próximo ligou para um assessor seu e começou a comentar o fato e a pedir providências. Eu apanhei de novo a carta e tornei a lê-la. Lia e relia aquilo, procurando respostas... quem e por que alguém escreveu aquilo, e dirigido a mim, com o meu nome e endereço escritos no envelope?... William terminou a ligação e me flagrou com a mão no pescoço e o olhar vidrado. Tirou a carta da minha mão, pôs-me de pé e me ordenou que parasse já de reler aquilo; haveria uma investigação que principiaria com a perícia da carta, do papel e do envelope, portanto, era melhor deixá-los como estavam. Deveria haver alguma impressão digital naquilo, algum sinal que denunciasse o remetente, acreditava William, e ele confessou-se realmente disposto a pegá-lo. Apesar de ser apenas um amontoado de blasfêmias sujas, aquilo tinha sido remetido a casa dele, à mulher dele e isso não estava certo e não iria ficar barato. O orgulho ancestral da família tinha sido arranhado.

William agora estava mais preocupado com a sua vingança à afronta que lhe fizeram do que comigo e me deixou só na sala. Eu me sentei e, sem querer, fui remoendo e repetindo aquelas palavras em minha mente e, às vezes, parecia realmente que elas me viam do coração apressado ou do fundo da alma, como queria o remetente.

Quando William retornou à sala e pôs-se de pé diante de mim, o seu cenho franziu-se e a sua expressão tornou-se pesada e estranha; ele olhava para as minhas mãos e para o meu pescoço. “Mas o que foi que você fez, meu amor?... Você está arranhando o seu pescoço com as unhas, veja! Isto é sangue! O seu pescoço está todo machucado; meu Deus! É a carta ainda?” Assenti com a cabeça, timidamente. Fomos até a nossa suíte abraçados. Lavei o pescoço, as unhas e o rosto; pus alguma maquiagem e, antes de descer com William para almoçar, amarrei um lenço no pescoço e prendi os cabelos. “Vamos”, ele me convidou, e me pegou pela mão. Descemos, dissemos algumas bobagens, fugindo do assunto: estava tudo bem já.

As crianças sentaram-se à mesa antes de nós, por brincadeira, e começaram a bater os talhares quando nos viram chegando. Nossos filhos, Andrews e Elisabeth, tiveram uma educação esmerada, desde muito pequenos, conheciam toda a etiqueta básica por hábito, já que sempre ceávamos juntos, mas eram também alegres e adequadamente irreverentes, como devem ser as crianças. Era já um pouco tarde para almoçar. A manhã e a tarde consumiram-se rápido naquele dia terrível, daí a brincadeira.

Sentamo-nos. Havia felicidade e paz nos rostos dos nossos filhos. Eu, contudo, estava ausente e vislumbrava a cena a minha frente se movendo surdamente. Todos os olhares, de repente, voltaram-se para mim, esperando algo... Tinham feito uma brincadeira, uma pergunta dirigida a mim, e todos esperavam pela minha resposta... Sorri e pensei em dizer algo, mas de súbito, ao olhar para o meu filho Andrews, visualizei, ou pior que isso, sonhei ter visto, num relance, uma serpente se enroscando em torno do seu pescoço... Virei o rosto... “Giovanna”... “Mamãe”... podia ouvir as vozes de todos agora, chamando por mim, mas era difícil tentar olhar para eles... quando girei a cabeça e os encarei, um grito agudo me fugiu da garganta: havia serpentes escorrendo pelos corpos de meus dois filhos! Eu me pus de pé, arremessando a cadeira para trás, William, me sustentou pelo braço ou eu teria caído de costas sobre a cadeira. A minha expressão parecia assustar as crianças de um modo terrível. Pedi desculpas, pedi licença a todos, e corri para o meu quarto.

Derramei-me sobre a cama e chorei com o rosto cravado no travesseiro o quanto precisava chorar naquele momento.

William chegou minutos depois, sentou-se à beira da cama, pensou em acender o cachimbo, mas lembrou-se de que eu não gostava que ele fumasse dentro do quarto de dormir. Começou a alisar as minhas pernas e pés, dizendo coisas que eu não conseguia ouvir direito... algo sobre chamar um médico... algo sobre uma crise nervosa... sobre eu ser uma pessoa sensível e delicada, capaz de me deixar influenciar por... por algo que para outras pessoas não pareceria tão assustador... era isso que ele mais amava em mim, a minha sensibilidade extrema, que me permitia ser uma grande artista plástica, ao seu ver, e uma grande mulher também... Foram coisas assim que ele disse e, do telefone do quarto mesmo, começou a falar novamente em médicos, em pequena crise nervosa, etc.

Lembro-me, em seguida de ter despertado num leito de hospital.

A enfermeira que era empregada em nossa casa tinha-me sedado, depois, eu fui levada àquele local, onde, provavelmente, fora novamente medicada e dormira muito. Aos poucos, conforme ia despertando, a memória dos sonhos tenebrosos que tivera ia ganhando forma ante meus olhos e, novamente, eu virava o rosto, de um lado para o outro, procurando me esquivar de revê-las. Esses relances de memória vinham acompanhados de uma voz que repetia trechos da carta pavorosa, os quais ressoavam dentro de mim como ordens: “Visualiza a cabeça decepada do Mago Branco à tua frente! Vinde a mim, vinde a mim, vinde a mim, ó Satanás! Ouve as gargalhadas que se expandem do teu coração! Visita a cena do martírio! Sevicia-o com brutalidade em companhia dos teus entes mais próximos e queridos! Ouve as gargalhadas que se expandem do teu coração! Sente ódio de mim, apóstata, senta ódio no teu coração! O ódio adestra no ódio”.

De súbito, um médico entrou no quarto seguido de William. “Ah, ela já acordou”, disse um dos dois com doçura. Estendi a mão para o meu marido, queria abraçá-lo e beijá-lo. “Você está melhor, meu anjo?” Respondi que sim, é claro que sim, eu estava melhor, pedi desculpas pelo transtorno, não sabia como explicá-lo, aquelas palavras... tinham realmente me afetado. Eu não queria ficar naquele quarto de hospital por mais tempo, tinha uma espécie de impulso de estar com os meus filhos, como se pressentisse que precisava protegê-los de algo, urgentemente.

O médico me fez uma série de perguntas rápidas, creio que queria certificar-se de que eu tinha melhorado e entender o mecanismo daquele surto. Procurei responder de modo a ser liberada no tempo mais breve possível, fui sensata, demonstrei alguma segurança e firmeza. Certas perguntas penetravam o meu ser como pequenas agulhadas, mas eu mantive controle sobre as minhas reações, creio ter deixado transparecer o mínimo possível que ainda estava completamente perturbada.

O médico findou por recomendar uma sonoterapia e um período de observação. Eu repliquei que preferia ser acompanhada em casa. Era um pedido da esposa do Governador do Estado, um dos homens mais ricos e influentes do País. O médico, contudo, insistiu em que eu fizesse, pelo menos, um lanche no hospital e, depois... bem, depois, “tal-vez”, fosse levada para casa para ser acompanhada em domicílio por aquela mesma equipe médica. O doutor olhou para William, que baixou os olhos num sinal de que concordava com ele.

No curto período em que fiquei a sós com o meu marido no quarto, antes da chegada do lanche, consegui, ainda uma vez, manter a calma e conversar sobre assuntos frugais. Dei uma risada ou duas, afetei estar muito mais serena interiormente do que de fato estava. “Ouve as gargalhadas que se expandem do teu coração!”.

Quando o carrinho chegou, empurrado por um rapaz, retorci-me por dentro. “Consagra os teus alimentos e a tua bebida. Sempre, ao comer ou beber, proclama em tua mente, coração e alma: “isso é o teu corpo, ó Satanás” e “isso é o teu sangue, ó Satanás! Faze isso de livre e espontânea vontade, conforme o teu livre-arbítrio”. A bandeja foi posta num suporte a minha frente e eu fiz de tudo para não olhar para os alimentos, sobretudo antes da saída do enfermeiro. Principiei a comer. Escolhi primeiro uma gelatina terrivelmente rubra. “Isso é o teu corpo, ó Satanás!”. Tomei um gole de suco para ajudar a engoli-la. “Isso é o teu sangue, ó Satanás”. Continuei a conversa com William e quando olhei novamente para a bandeja vi... “a cabeça decepada do Mago Branco”, e virei o rosto. Ele se assustou com o gesto brusco que eu fizera... contudo, continuei a falar, falei até um pouco mais alto e soltei uma gargalhada nervosa que me fez engasgar e tossir. O médico voltou a entrar no quarto nesse instante. Perguntou se eu tinha me engasgado. Respondi que sim e tornei a rir. Comi as frutas com naturalidade e afetei até alguma avidez. Eu estava faminta, disse ao homem. Passei à canja sem deixar de falar e sorrir. Estava sedada ainda e tinha os gestos lentos, mas queria transmitir bem-estar a todo custo. O médico tornou a sair, deixando-nos a sós mais uma vez e eu continuei a comer sem parar, falando e falando, sorrido e sorrindo... “Ouve as gargalhadas que se expandem do teu coração! Proclama-te já apóstata do Anti-Cristo, prostituta!”. William percebeu que as minhas mãos tremiam e que eu tentei disfarçá-las. Mas manteve um olhar cúmplice e, ao, mesmo tempo, preocupado sobre mim. Não me delatou, mas estava bastante contristado e tenso, pude notar.

Fui transferida para os meus aposentos em casa no final da tarde daquele segundo dia após a chegada... da primeira carta.

Eu já estava instalada nos meus aposentos domiciliares, cercada pela equipe médica do hospital, que continuou me acompanhando, quando os meus filhos foram trazidos até mim. Estavam assustados e abatidos. Mais tarde, eu soube que o motivo do seu abatimento era algo muito mais infame do que apenas o resultado do susto que eu havia lhes dado: duas outras cartas de teor quase idêntico ao da primeira tinham sido remetidas para as crianças na escola e elas as leram e compreenderam o que se passava comigo. Quando William soube disso, buscou culpados entre os funcionários e professores do colégio: queria explicações, queria saber se era habitual que os alunos recebessem correspondências lá. Ordenou à segurança da casa que retivesse todo tipo de envelopes ou embrulhos remetidos pelo correio para nós e utilizassem os aparelhos de detecção de explosivos, metais e drogas para checar a correspondência, antes de repassá-la a ele, pessoalmente. Pedira, ademais, que as investigações sobre o ocorrido tivessem um curso mais célere; queria saber se havia no papel, na tinta das três cartas ou dentro dos envelopes qualquer substância que pudesse ter potencializado o efeito daquelas palavras sobre mim. As crianças foram submetidas a exames para detectar a presença de possíveis alucinógenos no seu sangue. Tudo isso as havia abatido bastante, quando vieram me ver acamada e medicada, tentando disfarçar o meu próprio mal-estar. “Imagina todas as crianças envoltas por serpentes. Vê e sente as serpentes escamosas, deslizando sobre seus corpos”. Enfrentei os transtornos que sofria com coragem e por amor dos meus filhos, e abracei-os contra o meu seio, cobri-os de beijos e sorrisos que se misturavam às lágrimas invencíveis a deslizarem pelo meu rosto... como pequeninas víboras. “Cria, apóstata! Usa a tua própria imaginação!”.

Não foram encontrados vestígios de drogas alucinógenas nos envelopes ou nas cartas, mas tão-só algum resíduo de vapor de enxofre, que fora entendido como um toque a mais de mau gosto por parte do mentor daquela perigosa pilhéria.

As minhas idas ao toalete eram terríveis, procurava adiá-las o quanto podia, algumas vezes, preferia urinar na cama. “Visualiza a cabeça decepada do Mago Eunuco à tua frente. Mentaliza-a no vaso sanitário, defeca sobre ela!”

As refeições eram ainda piores e o quarto, antes um local tão adorável para mim, com um longo vão livre entre a porta de entrada e a imensa cama suntuosa, três lindos tapetes persas enfileirados sob três luminárias de palácio, volvera a palco de pesadelos diuturnos que os sedativos pareciam tornar ainda mais nítidos.

“Visita a cena do martírio durante o sono e pelo resto do teu dia, sempre que desejares; escarnece do Mago Branco, faze troça da sua dor, do seu ridículo sofrimento, escarra sobre ele, chuta o baú de bronze sobre os seus ombros, usa a tua criatividade, humilha-o da forma que desejares e se, apenas se, assim, o desejares. Sevicia-o com brutalidade em companhia dos teus entes mais próximos e queridos, faze isso em tua mente, coração e alma; vê a todos como um bando de faunos e sátiros, com pés de bode e olhos de fogo, seviciando-o brutalmente, torturando-o e humilhando-o alegremente, conforme o teu desejo carnal de fazê-lo e a tua própria criatividade. Cria, apóstata, cria! Ouve as gargalhadas que se expandem do teu coração!”.

Eu estava louca. Talvez sempre tivesse sido louca, pois nada justificava que as palavras escritas naquela carta imunda pudessem afetar uma pessoa sã de um modo tão severo. Creio que era isso o que os médicos conjeturaram àquela altura, até que, lá pela terceira semana de tratamento intensivo, psicoterapêutico e medicamentoso, comecei a reagir.

Fui subjugando as vozes que me vinham à mente, os fragmentos daquela carta ridícula; as imagens associadas a tais vozes me pareciam cada vez mais tolas e irreais, conforme caminhava pelos jardins da casa e respirava o ar puro e salobro que ascendia do mar. A comida foi-se tornando mais fácil de engolir e digerir e, enfim, quase que subitamente, eu estava já me rindo de tudo aquilo e concordando com todos sobre o quanto era banal e sem sentido.

William começou a recobrar o ânimo, quando me viu assim, mais alegre e corada, talvez até, finalmente, curada daquele trauma excessivo diante de uma carta escrita por algum desajustado, cuja identidade nunca fora descoberta, até hoje.

Voltei a fazer as refeições à mesa e, cansada já do acompanhamento médico em tempo integral, solicitei a visita da psicoterapeuta três vezes por semana e a saída da equipe médica do hospital de meus aposentos, pois que, inclusive, já tínhamos, desde quando nos casamos, enfermeiros empregados na casa para qualquer atendimento de emergência.

A paz parecia estar retornando às nossas vidas, até que, no trigésimo sétimo dia depois da chegada da primeira carta, o mal maior que poderia suceder desceu dos infernos sobre todos nós.

William chegou a casa no final da tarde e, não, encontrando a mim ou aos seus filhos nos cômodos inferiores, subiu ao nosso quarto para me ver. E, aí, a cena que se abriu ante os seus olhos, quando girou a maçaneta e entrou no aposento, fora demais mesmo para ele, um homem centrado e seguro, que não se deixava atingir diretamente por tolices como aquelas escritas num papel, mas, por outro lado, amava a sua família sobre todas as coisas no mundo.

Dos grandes lustres palacianos da suíte projetaram-se no chão, aos pés de William, as sombras de três corpos dependurados. Ele acendeu as luzes com o olhar e a fronte desfigurados pela dor... Andrews, Elisabeth e eu, nesta ordem, desde a porta até o fundo do quarto, pendíamos do teto enforcados. Os pés muito alvos das crianças balouçavam ao sabor do jogo da morte. O pai desesperado tentou desprender o filho do lustre, segurou-o pelas pernas gélidas e saltou, saltou até fazê-lo despencar sobre o tapete, sem vida. Aturdido, William, gritou por ajuda! Tentou reanimar Andrews e foi soltar o corpo de Elisabeth do segundo lustre. Os enfermeiros e os seguranças começaram a adentrar no recinto, soltaram Elisabeth, depois foram acudir Andrews, mas era tarde. Alguém principiou a me abraçar pelas pernas, buscando livrar-me da forca, e, nesse instante, respirei e movi os braços e as mãos, procurando afrouxar o nó no meu pescoço. William, então, teve um colapso; correu para mim, ainda dependurada no lustre e começou a me esmurrar, gritando enfurecido. “O que foi que você fez com os meus filhos, maldita? Maldita! O que foi que você fez?!”. Soltaram-me; ele correu para junto das crianças: elas não tinham pulso ou batimentos; empurrou o enfermeiro e principiou, ele mesmo, a fazer respiração boca a boca em Andrews, pressionando o seu peito... “Rápido, acudam... acudam...”. Ergueu-se, enfim, com a fronte ainda desfigurada, quase irreconhecível. “Senhor, perdoe-me, mas eles estão mortos”, disse-lhe o enfermeiro. William comprimiu a cabeça com ambas as mãos, gritando “não, não!...”. Correu para fora do quarto e, um minuto depois, ouviu-se o estampido de uma arma de fogo. William de Médici e Andreatti havia-se matado com um tiro que lhe atravessou, meu Deus, ambas as têmporas e a palma da mão esquerda. Eu fora reanimada e conduzida em choque para o pronto-socorro

Daí em diante, há um vácuo na minha memória.

A mãe de William, pessoa frágil e cardíaca, muito mais debilitada ainda após a tragédia que se abatera sobre a casa de seu filho, recebeu, nesse interregno, a quarta das sete terríveis cartas do filho de ASMODEU. Nessa carta, não havia texto a não ser esse: “o filho de ASMODEU veio te buscar, velha” e, conforme Mildred de Médici e Andreatti a desembrulhara, um pedaço de couro de serpente, ainda fresco, tocou as pontas de seus dedos, arrancando-lhe um arrepio que proveio, por certo, do fundo de sua carne e, finalmente, um berro rouco e... incompleto. O pedaço de couro de serpente caiu no chão, junto a seus pés; nele havia dois olhos desenhados, um em tinta rubra e o outro, em tinta preta. Mildred enfartou de imediato e veio a falecer, três dias depois.

Passei dois anos internada e, quando tive alta, retornei corajosamente à casa pela qual William e eu tínhamos abdicado de ocupar a residência oficial. Eu era, agora, a única herdeira viva do império dos Médici e Andreatti.

Escrevi um livro sobre o que se passou conosco; estive interditada e meu pai fora meu curador nos três primeiros anos; depois, entrei com um processo para atestar a minha recuperação total e reassumir o controle de minha vida. Papai morreu no ano seguinte, num terrível acidente de trânsito.

Criei uma fundação para fins humanitários; assumi minhas funções como acionista majoritária do grupo e, superando árduas barreiras, concretizei o impossível, assumindo a presidência do poderoso conglomerado de empresas da família Médici e Andreatti, impondo, muito rapidamente, a minha competência através do incomensurável crescimento dos negócios que soube promover.

No quinto ano após a tragédia, candidatei-me a Deputada Federal e fui eleita com um número de votos mais do que suficiente para eleger uma Senadora da República. Nas próximas eleições, já se comentava que, provavelmente, me candidataria ao Governo do Estado, ocupando o cargo deixado vago pelo meu marido querido, anos atrás.

Foi, então, que rumores começaram a surgir, de um lado e de outro; teorias de conspiração, diga-se de passagem, sem qualquer sentido e de muito mau gosto, urdidas, sobretudo, por um repórter fracassado de um pasquim de segunda categoria que tinha um muito imaginativo e atrevido conjunto de hipóteses a propagar, sem base em provas de qualquer espécie, mas apenas em toscas e dantescas ilações sobre o que poderia ter sucedido na casa de William e de sua mãe Mildred de Médici e Andreatti. Num artigo pateticamente intitulado “Os Demônios e Os Anjos da Mansão dos Médici e Andreatti”, esse jornalista expôs o seu mórbido ímpeto criativo, produto de uma mente perturbada e infeliz, sem dúvida.

O artigo tinha, ainda, o seguinte subtítulo: “Giovanna de Médici e Andreatti: anjo quase-suicida ou demônio psicopata e homicida?”.

Bem, parecia-me, enfim, que o sucesso de uma mulher bela e loura no dito “mundo dos homens” ainda era motivo de revolta e intrigas por parte desses pobres machos obsoletos, já cientificamente desnecessários até mesmo para a manutenção da espécie humana; e parecia-me, ademais, que o senhor Mikhail Goldman, esse tal jornalistazinho fracassado e amaldiçoado, de aspecto pouco asseado, bem como a sua mulher gorda e seus três filhos asquerosos e malsinados iriam conhecer, muito em breve, toda a força e toda a fúria... do filho de ASMODEU.

Igor Buys; 2005

Behemoth e Leviatã; William BLake

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