PROTOBJETO OU OBJETO THAUMÁTICO
A comunicação, em princípio e por princípio, é impossível.
Como está pensada, como tendo fulcro na inteligência lógico-verbal
e na linguagem mesma, que deriva da comunicação, e não ao inverso
— é de mister se atentar para esse fato —;
nestes termos, a comunicação é impossível e, outrossim,
a linguagem compartilhada, objetiva.
A mensagem, verbalizada ou escrita, amiúde pode ser interpretada
de inúmeras formas, todas logicamente plausíveis, como seria fácil provar,
não fora também ocioso em relação a vários outros labores de lingüistas e pensadores.
Alguém me envia uma mensagem, digamos, indireta, disfarçada via rede, fato da vida hodierna amplamente compreendido por todos. A mesma mensagem, do ponto-de-vista
lógico, pudera ensejar três, cinco, dez interpretações plausíveis: todas igualmente
plausíveis. Entanto, eu mesmo escolho a interpretação que vai calhar de ser
a correta: a pretendida pelo emissor da mensagem. E, de quebra, outros tantos
observadores, casuais ou habituais, pinçam daquele leque de opções mencionado
a única que vai ao encontro do pensamento e do — sentimento do emissor.
Ora, como isso se dá?!
Por Deus, como?!...
Já disse, algumas vezes, que a conexão via rede nos está tornando em telepatas.
Todavia, o que seria essa telepatia, o que a tornaria possível?
O quê, senão um mecanismo essencial da própria cognição.
Quando a criança aprende a falar, tornando-se capaz de associar o signo verbal
[emitido pelo falante, à coisa mesma por ele referida a partir de tal signo,
[realiza uma operação da cognição a que se pode chamar — transporte ou abordagem
[empática: a criança se põe no lugar do falante para saber como este refere o signo ao
[objeto,
quebrando, assim, a relatividade e a inescrutabilidade da referência.
Os ditos grandes macacos, nossos parentes próximos na evolução, já se provou: podem
[realizar essa mesma sorte de transporte da sua identidade
ao tópos, à posição histórica, ou espaço-temporal habitada pelo falante.
Outros tantos macacos, também muito inteligentes, já não possuem tal faculdade,
[que novos estudos atribuem a um ainda obscuro grupo de células,
ditas células-espelho, ou neurônios-espelho.
Os signos da fala são, em geral, perante a Semiótica de Peirce, — símbolos.
I.e., são signos que referem o objeto por meio de uma lei de associação
convencionada, em si mesma um signo designado de — legissigno.
Uma palavra de caráter onomatopaico já é um — ícone:
um signo que refere o objeto por meio de uma relação direta de semelhança.
Nos primórdios da linguagem, grande parte das palavras deviam encerrar um caráter
[icônico: onomatopaico. E, destarte, poderiam ser compreendidas sem o transporte
[empático
do ouvinte ao tópos do falante. Mas a linguagem hodierna é muito mais complexa, tendo
[perdido há muito a natureza básica icônica.
O processo da cognição que permite a abordagem do outro para saber o que este está a
[— pensar é a empatia de primeiro grau.
Já o estádio da abordagem empática que faculta-nos sentir como o outro está a sentir é a
[empatia de segundo grau, ou: compaixão.
Se a empatia de primeiro grau é um aparato da cognição que nos permite aprender a
[linguagem compartida e, destarte, nos — nacionalizarmos: passarmos a fazer parte de uma
[nação e cultura; a empatia de segundo grau, ou compaixão é o instrumental, digamos,
[fisiológico humano que nos garante a possibilidade de convivermos socialmente,
[concretizando o ideal do animal social, o zoon politikón aristotélico.
A linguagem tem a sua gênese, pois, no processo da cognição comunicativa, que dá azo a
[que o ouvinte, de regra a criança, se transporte ao tópos ocupado pelo falante para
[refundar um protobjeto, ou objeto thaumático.
O thauma, ou espanto diante do que simplesmente é, ocorreu na história da linguagem na
[primeira vez em que um ouvinte entendeu o que um comunicante desejava referir por
[meio da fala não-icônica, não-onomatopaica, mas simbólica e, portanto: objetiva.
Ora, para que haja objeto, forçosamente, tem de haver — sujeito.
E a subjetividade surge, outrossim, nesse mesmo momento, como uma teia delicada,
um conjunto de interligações triádicas: falante, ouvinte, coisa aparente; emissor, receptor, mensagem; código, contexto, canal; signo, objeto, interpretante.
A subjetividade surge como uma relação de dois ou mais agentes com coisas aparentes,
[coisas do mundo. E o próprio mundo tem lugar nesse mesmo momento! O que há antes é
[ainda o caos pré-lingüístico: cada um exprime apenas o que sente, o que deseja, as
[nuanças e facetas da sua individualidade.
A linguagem, ou o seu embrião, é, portanto, nesse momento pré-lingüístico: individualista,
[e não subjetiva—objetiva, como correntemente se erra em supor. Erra-se ao supor que a [linguagem da animália incapaz de transporte empático seja “subjetiva” e, mui
[paradoxalmente, ainda não objetiva...
Para entender-se o que seja subjetividade é mister compreender o que seja
[protobjetividade e protossubjetidade.
O protobjeto, ou objeto thaumático é um tópos: um lugar do tempo e do espaço onde
[pisam, com seus corpos projecionais empáticos, suas identidades — todos
[os-homens
[de uma nação ao longo das gerações, e por onde quer que se arrojem em viagens,
[batalhas, conquistas, derrotas e escravidões. Nesse tópos, todos os nacionalizados
[se — comunicam, efetivamente, e desfrutam, pois, de plena — comunhão.
Igor Buys
14 de dezembro de 2017
Kandinsky; Amarelo Vermelho Azul (1925)
