IMOS CORPOS (PRETO SOBRE LILÁS)
As luzes se apagaram.
Apagaram-se os sons;
os porvires, os pensamentos:
tudo escureceu
Agora
Agora
Agora
As luzes se apagaram,
caiu a energia
Uma das trovoadas mais extraordinárias que já me atravessaram,
me trespassaram...
E súbito o tempo parou.
Agora.
Outras trovoadas menos impressionantes, mais distantes
e os grãos da chuva gelados quebrando-se contra o telhado de madeira
O condicionador de ar principia a piscar como um estroboscópio
As coisas vêm e vão,
vêm e vão,
esbatidas nesse
Agora negro
denso, liquoroso
que se expande em todas as direções da sempiternidade
Cerro os olhos
e o futuro volta a escorrer dentro de mim
A chuva chacoalha as árvores lá fora
Abro os olhos para a pulsação terrível do aparelho enlouquecido,
as coisas dentro da casa, os quadros na parede, o televisor
emergem de entre lilases
e novamente mergulham na escuridão opaca
Cerro os olhos e visito algumas telas de Rothko
Visito rostos, vozes
flores, beijos,
paisagens vítreas;
o rio do tempo voltou a correr a partir de sua nascente no meu imo corpo
E o meu imo corpo
de pés descalços sobre o tapete de margaridas desse fluxo
que se lhe esvai das veias morno
caminha enlevado, ou já alado em direção ao teu
Teu corpo imo, real
profundo, que não é mera refração do meu
não é o eco do ego Narciso sobre a tona do
lago louco
cego, oco
perdido em si mesmo
Ao contrário, é o apanágio do saber-me eu e saber-te tu pré-temporais,
fundadores de todo movimento e toda forma
pré-entes
presentes
no sentido mais exato e revelador do termo;
é a epifania do sabermo-nos nós capazes
de traspresença,
de transcendência,
de projeção e fusão empáticas*,
abraçando-nos no Infinito,
e por isso mesmo,
por nada menos que isso.
Capazes de amor.
Igor Buys
Ilha Grande, 18-19-11-2017
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*V. Teodoro (Theodor) Lipps, empatia (Einfühlung), projeção e fusão empáticas.