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PEDERASTIA, AMOR PLATÔNICO E ELISÃO DO ELEMENTO FEMININO NA GRÉCIA DO SÉCULO IV a.C.

A homoafetividade é acidental em relação ao advento da pederastia grega, em que pese a utilização do termo para, em sentido impróprio, denotar homossexualidade.

Essencialmente, a paiderastia grega vem a ser um complexo ideológico amplo, que tem como centro, não, em absoluto, a homoafetividade, ou, em qualquer âmbito ou sentido, a sexualidade, senão a -- misoginia: a aversão mórbida e, num passo adiante, o ódio coletivo e cultural às mulheres.

A homoafetividade, como faceta eventual da paiderastia grega, se pratica entre homens maduros e jovens, sobretudo, adolescentes e pré-adolescentes, os efebos, portanto, para o direito ocidental contemporâneo, com violência presumida.

Essa violência efebofílica conheceu períodos de proibição e de permissividade ampla entre os gregos, ao longo do tempo.

No século IV a.C., período quase congruente com o dito Século de Péricles, ou Idade de Ouro de Atenas (439 a.C. a 338 a.C.), quando irrompe o movimento socrático e se dá a grande decadência da vitalidade dionisíaca do pensamento e da cultura, permanecia controverso o tema in loco, mas é certo que se praticava a efebofilia muito amiúde. Platão chega a entender a paiderastia ou, especificamente, a brutalização dos jovens como distintiva da sociedade grega em relação às civilizações consideradas bárbaras pelos helenos.

Atualmente, com a volta à cena da extrema direita e do fascismo, no exterior e, a partir de lá, no País, surgem defesas incautas e obscuras do modelo pederástico, decantado como uma via erotizada saudável de inserção social e mesmo de educação...

Neste diapasão, cumpre investigar que tipo de cenário leva os homens a se interessarem sexualmente pelos adolescentes na Grécia do século IV a.C..

As mulheres gregas conheceram completa exclusão em relação às atividades sociais, sendo-lhes negado, em suma, nada menos que: o emprego da palavra. Sócrates, e.g., advoga que, em função de sua natural delicadeza, seria belo que as mulheres guardassem silêncio...

O helenista J. P. Vernant esclarece como ninguém a importância da palavra no mundo grego: por meio desta, se pratica a democracia, toda a vida política se apóia na persuasão dialética (Peithó) e é exercida publicamente.

Assim, é a palavra que faz dos homens pares, iguais: merecedores e usuários da democracia, este sistema, no nascedouro, tão discriminatório.

Quando se retira das mulheres o direito à palavra nos debates públicos, e isso ocorre de modo mais drástico e cabal na Atenas de Platão, Sócrates e Aristóteles que na rival Esparta; se lhes retira, deveras, qualquer tipo de cidadania, havendo os que defendam, não obstante, alguma dimensão política nas conversas privadas entre vizinhas...

Dentro desse quadro, as relações sexuais entre homens e mulheres se dão, freqüentemente, como atos de violência e estupro: os homens avistam mulheres ao ar livre, as perseguem e violentam, -- sem lhes dizer palavra, algumas vezes, as raptando e mantendo consigo, outras simplesmente se satisfazendo e as abandonando ao léu.

O modelo do estupro sem emprego de palavras é retratado na literatura clássica como prática comum a homens esclarecidos, reis, nobres, heróis, deuses, semideuses, divindades campestres e seres monstruosos, tais como faunos, sátiros, centauros, e reverberou, ainda, na Roma dos primórdios, haja vista o mito do rapto das sabinas.

É também sob o pretexto de evitar o estupro e rapto das mulheres, inclusive pelos próprios familiares, que estas são mantidas em cárcere privado e se entregam às prendas domésticas, como tecer e costurar, tornando-se, com o matrimônio, em organizadoras do lar.

E eis que, neste contexto, de silêncio feminino, os adolescentes, sobretudo, durante o período da sua instrução básica, passam a despertar o -- amor platônico.

Ao contrário do que a crença popular celebrizou, o amor platônico não é infenso à carnalidade, porém traz para o âmbito das relações afetivas com práticas eróticas um elemento novo, tacitamente proibido entre homens e mulheres: a palavra.

Os preceptores e homens maduros, a despeito de praticarem também atos carnais com os jovens, aprendem a... amá-los e a vivenciar esse páthos por meio de práticas que não são extrinsecamente sexuais.

Tais momentos de erotismo sem componente carnal visível, conquanto insertos em relações que poderiam ser carnais ou não, constituem uma novidade intrigante para os gregos do século IV a.C..

Estar junto de alguém, praticar exercícios físicos e desportos consigo; caminhar ao seu lado pela ágora e pelos bosques, dialogando; freqüentar com tal pessoa os simpósios e lá debater os temas que serão ditos filosóficos, tudo isso, agora, era parte da afetividade, desse assim referido amor platônico, que não pode ser dado às mulheres e que representa, no fundo, apenas a imagem especular invertida do ódio misógino.

Destarte, o amor como relação de troca, que exorbita do mero coito, ressurge na Grécia clássica no seio de relações homoafetivas. E, isto, enfim, é o amor platônico, que, supostamente, não se conhecia mais, naquele momento, em relações heterossexuais.

Vale ressalvar, no entanto, que o silêncio da mulher, normalmente privada de educação intelectual e da possibilidade de se manifestar sobre assuntos elevados, mesmo com eventual consentimento do amante, não se aplicava às heteras. Os banquetes onde a filosofia, propriamente dita, tem lugar e conhece seu horto é, pois, compartilhado entre homens maduros, sobretudo, de classe alta, prostitutas e jovens brutalizados do sexo masculino.

Isto posto, conclui-se, preliminarmente, que a pederastia helênica é, a um só tempo, fruto direto e, num moto-contínuo, instrumento de manutenção da exclusão da mulher de todo e qualquer papel social, inclusive o de companheira amorosa. Como se um amor heterossexual em moldes platônicos, i.e., com a inserção da palavra, pudesse ter força para subverter a ordem patricarcal ultramasculina (ou pederástica), levando ao questionamento e à ruptura do silêncio feminino.

Eis porque Platão defende que a pederastia distingue esse mundo grego do período clássico das sociedades bárbaras: tal instituto, cooperando com a elisão do amor à mulher construído em pé de igualdade e companheirismo entre sexos opostos, e o sub-rogando por uma homoafetividade masculina institucionalizada, artificial e instrumental em relação à ideologia do patriarcado, alicerça uma sociedade masculinizada ao extremo, em que já não se entrevê o elemento feminino amordaçado sequer no plano sutil, semântico e sintático, do pensar e do sentir, em suma: sequer no âmbito da linguagem.

Valendo-nos deste azo, poderemos vir a desenvolver, num desdobramento eventual desta singela perscrutação, a tese de que, não por acaso, a sociedade grega desfeminilizada do século IV a.C. é exatamente a mesma que castra, reprime e vê desaparecer o princípio do ilimitado dionisíaco, passando a se centrar no elemento apolíneo delimitador. Procuraremos, quiçá, demonstrar que o componente dionisíaco é essencialmente afim do princípio feminino, embora mais complexo que este, enquanto que a rigidez, a finitude apolínea, quando insulada de sua contraparte natural, passa a ser a expressão decadente de uma ultramasculinidade pré ou protofascista.

Igor Buys

29 de maio de 2011

Ângulo da escultura O Rapto de Perséfone, de Bernini

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