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NOMADOLOGIA, MONADOLOGIA E DEMONOLOGIA (AINDA A PROPÓSITO DO CHOCOLATE CETOGÊNICO)

A dieta baseada na teoria dos tipos sangüíneos, que mencionei, recentemente, teria, segundo noticiosos, sido derrubada por um estudo de talvez dois anos atrás. Entanto permanece vívida a tese de que os portadores dos tipos sangüíneos do grupo O seriam descendentes longínquos dos nômades do passado, os quais eram, por força, caçadores carnívoros, e não agricultores comedores de grãos e folhagens. E a poesia disso é tudo o que nos interessa aqui como mote.

A verdade científica é, sempre, em qualquer caso, relativa e, inclusive, provisória -- i.e., relativa no tempo. Tão-só verdades religiosas e, mais especificamente, dogmáticas -- para excluir desse rol as propriamente teológicas --, são absolutas e insuscetíveis de reexame.

A “Nomadologia” de Deleuze, que alude à “Monadologia” de Leibniz, tem como foco os mongóis liderados por Gêngis Khan -- chamado Temudjin nos seus primeiros dias -- que, sendo cavaleiros nômades, à semelhança dos dórios, etnia de Héracles, o principal herói grego, sequer conheciam a escrita. E, portanto, muito menos, leis escritas. Ainda assim, constituíram a “máquina de guerra”, expressão do pensador francês, através de que fizeram raiar o maior império que a História já contemplou, tanto em extensão de terras contíguas como, quiçá também, -- em relação ao cômputo total de habitantes do planeta a seu tempo --, em número de súditos.

Essa máquina de guerra deleuziana, potência não, deveras, desordenada e caótica, mas, muito ao contrário, regida por uma sistemática própria, avassaladora ao ponto de prescindir de cogência, é nitidamente -- anarquista, sendo oposta pelo pensador ao “aparelho de Estado”.

O Estado, para Deleuze, é uma estrutura híbrida que tem como facetas primeiras, “o rei-mago”, de um lado, e o “sacerdote-jurista”, de outro. Dessa primeira oposição dual, biunívoca e de complementariedade, a formar um todo uno -- muito afim, diga-se de passagem, da nossa definição de oposições diádicas de pulsação caótica --, se desdobram, em cascata, todas as demais relações “semiológicas” (termo do francês) de oposição que, em conjunto, compõem e estruturam o aparelho de Estado e seus órgãos de poder.

Ele afirma: “o Estado não se define pela existência de chefes, e sim pela perpetuação e conservação de órgãos de poder. A preocupação do Estado é conservar”. A existência de líderes naturais, como Gengis “Khan”, i.e., Gengis, o Chefe, estariam entre os mecanismos de prevenção de que lançavam mão os povos tribais, primitivos para evitar a formação do Estado entre eles: algo que não compreendiam, temiam e de que se esquivavam com todas as forças. “Os mecanismos conjuratórios ou preventivos fazem parte da chefia, e a impedem que se cristalize num aparelho distinto do próprio corpo social”, salienta.

Em seguida, cita o antropólogo francês Pierre Clastres: “Clastres descreve essa situação do chefe cuja única arma instituída é seu prestígio, cujo único meio é a persuasão, cuja única regra é o pressentimento dos desejos do grupo: o chefe assemelha-se mais a um líder ou a uma vedete (sic) do que a um homem de poder, e corre sempre o risco de ser renegado, abandonado pelos seus. E mais: Clastres considera que, nas sociedades primitivas, a guerra

é o mecanismo mais seguro contra a formação do Estado: é que a guerra mantém a dispersão e a segmentaridade dos grupos, e o guerreiro é ele mesmo tomado num processo de acumulação de suas façanhas que o conduz a uma solidão e a uma morte prestigiosas, porém

sem poder”.

Na seqüência, Deleuze acorre a Hobbes: “Hobbes viu nitidamente que o Estado existia contra a guerra, a guerra existe contra o Estado, e o torna impossível. Disto não se conclui que a guerra seja um estado de natureza, mas, ao contrário, que ela é o modo de um estado social que conjura e impede a formação do Estado.”.

Tudo isso soa, sem dúvida, um tanto nietzschiano -- ou, quando menos, a quem prefira, pós-nietzschiano. E Nietzsche é, deveras, uma espécie de anarconaturalista, mas, nunca, em qualquer hipótese, um ultranacionalista estatista que pudesse ser usado como musa pelos nazistas para o seu projeto de nação supremacista sem que isso envolvesse uma grande gafe histórica.

O problema crucial do anarquismo nos dias de hoje reside no fato de que organismos de poder privados e, portanto, não-estatais, passaram a submeter o próprio Estado, se elevando sobre este e sobre a máquina de guerra institucionalizada que o serve. Essa máquina de guerra degenerada, já desde o surgimento das cidades-estado, em um órgão de poder estatal, como demonstra Deleuze, acrescente-se aqui: passou a servir a interesses privados e, novamente, exteriores ao Estado. No XX, a guerra, inclusive, se converte num negócio, só deixando de dar lucro e ser diretamente fomentada pela indústria bélica e associadas nos anos em torno da virada para o atual milênio.

Porém, tais organizações ou organismos de natureza privada, que são, precipuamente, as grandes corporações, se, de um lado, militam contra a existência mesma do Estado, de outro lado, -- e muito mais gritantemente --, pretendem submeter a sociedade e o que remanesce nesta de “estado social” puro (Deleuze) a uma nova ordem totalitária despótica sem paralelo ou precedente.

Proudhon, pai do anarquismo, hoje, é absolutamente certo: não seria mais antiestatista.

O Estado se converteu, -- quiçá, por aberração --, no último baluarte contra o anarcocapitalismo e a máquina globalizadora, que pretende, inclusive, remover todos os resíduos tribais das sociedades; pretende a uniformização das culturas para tê-las, todas e cada qual, convertidas numa subcultura, sem exagero, pré-humana, com a supressão cabal da -- biodiversidade humana: o bem mais precioso relacionado à vida.

Tal subcultura, já bastante difundida entre nós, é muito representativa da nação hegemônica e se compraz em exibir sua penetração, e.g., através de imagens de garrafas de refrigerante em mãos de tuaregues, calças de brim na cor índigo entre povos autóctones amazônicos, etc..

Os artífices da globalização estão bastante conscientes de que matar as culturas, as linguagens regionais é matar as nações em si, o eu-coletivo de cada povo; e, em se matando o eu-coletivo, as individualidades se perdem por completo, transformadas em algo que só se pode descrever com precisão, na própria língua da globalização, como -- “pets”...

Para ilustração do que se acaba de afirmar, considere-se a seqüência de versetos seguinte.

1 / 36 - Sem alcançarmos tal dualidade, não chegaríamos a ser propriamente humanos. Talvez, como os míticos meninos-lobo, nos parecêssemos com lobos. 2 - Ou macacos, ovelhas, ursos: animais associados à lenda do Homo Ferus, que, criado desde recém-nado entre animálias, se assemelharia a estas. 3 - O mito traz uma ilustração poderosa de como, e até que ponto, — a inteligência empática nos distingue e define em nós: a nota da humanidade. 4 - Ampliando-o, podemos considerar um grupo de recém-nascidos, que tivesse sido abduzido por alienígenas para uso num experimento laboratorial. 5 - Numa câmara, os alienígenas poriam uma criança entre serpentes e a alimentariam, nos primeiros anos, por meio de tubos fixados ao seu corpo. 6 – Noutra câmara, poriam outra criança entre vegetais e também a manteriam viva à distância sem permitirem que esta jamais os visse ou ouvisse. 7 - Outras tantas cobaias seriam levadas a crescer em viveiros entre lobos, carneiros, ursos, cães, macacos: animais já incorporados a tal mito. 8 - Algumas das crianças, é razoável supormos, não sobreviveriam; outras tantas, porém, comprovariam o mito, a que Jean-Jacques Rousseau deu fé. 9 - Das sobreviventes, aquelas levadas a crescerem entre os ofídios findariam por se moverem como serpentes, rastejando até o alimento e a água. 10 - E as mantidas entre vegetais reduziriam os seus movimentos, progressivamente, nunca prescindindo dos tubos, até se tornarem de todo: imotas.

Jellinek propôs que o humano apartado da sociedade é uma ficção. Ou seja: amputada a dimensão do eu-coletivo em qualquer indivíduo humano, o eu-individual, concomitantemente, perde todo cariz de humanidade: não existe. A inteligência empática, a partir de que é construído o eu-coletivo, irá tornar os indivíduos em símiles de qualquer coisa viva que esteja ao alcance dos seus sentidos, como no mito do Homo Ferus, acima; ou, senão, em duplicatas de andróides, de bonecos articulados, de cataventos, birutas…; de comedores de “fast food”...; enfim: de "pets".

Destarte, o Estado evoluiu de aparelho opressor das individualidades em último baluarte para a sua preservação, ainda que dentro de limites artificiais, antinaturais.

E, se a máquina privatista, anti-estatista e seus porta-vozes falam em prol de um “individualismo” que, absolutamente não oferecem, em nenhuma medida, muito ao contrário, impondo a reificação e a mutilação homogeneizadora, o fazem apenas com o intuito de provocar nas sensibilidades libertárias o natural anelo por regressar à espontaneidade nomadológica e monadológica dos povos primitivos.

Os nômades não são mônadas no sentido de que sejam simplicidades absolutas, como os átomos pré-materiais de Leibniz; porém, neles se movem, sim -- fantasmas internos, i.e., sentimentos, emoções, pulsões, impulsos vários, instintos, intuições, paixões, os quais, em conjunto, constituem, podemos dizê-lo, poeticamente: um fantasma interno: um “daimonion”. E, ao ladearmos esse termo a nômades e mônadas, já cabe, no mesmo passo, falar numa -- demonologia social. E numa busca da individualidade -- nomadológica, monadológica e demonológica.

Os fantasmas internos, discriminados acima, ao contrário dos fantasmas externos, que são objetos do mundo, trimendisionais no espaço e no tempo -- este que comporta as dimensões passada, presente e futura -- são: indivíduos (e indivisíveis).

Claramente, se não pode dividir um sentimento, um instinto ou pulsão em menores partes. E tudo aquilo que não pode ser dividido no espaço e no tempo é -- ilimitado, ou pré-temporal e pré-espacial: uma mônada.

A individualidade é, em nós, o conjunto articulado desses fantasmas internos, indivíduos ou monadológicos. Os nômades de Deleuze são, pois, pura individualidade e espontaneidade, embora, como já dito, sua conduta não seja desordenada e caótica, mas regida pela potência avassaladora da articulação dessas mônadas, a qual é suficiente para garantir que tais cavaleiros ferozes possuam, cada qual, tanto um eu-individual, como um eu-coletivo, qual seja -- a máquina de guerra. Esta que também pode ser entendida, seguindo a linha de pensamento do francês, como máquina de revolução, de sublevação contra as amarras, as limitações das estruturas de poder jurídico-eclesiásticas.

Na minha poética, refiro, amiúde, a individualidade como um todo por meio da expressão -- o fantasma interno (meu ou de outrem). E o fantasma interno, creio já ter dito, é esse “daimonion”: a articulação, naturalmente maquinal, porém não artificialmente aparelhada, de tudo aquilo que, em mim e noutrem, é indivíduo (e indivisível); ou seja: tudo aquilo que é pré-mundano, pré-temporal e pré-espacial.

Se Sócrates pode conversar com o seu “daimonion” sem estar esquizofrênico é porque possui um eu-individual, -- seu “daimonion” mesmo --, e um eu-coletivo, a razão, formada de uma linguagem compartida (estrutura coletiva), de conceitos, significados (coletivos), de toda uma sintaxe e, em sentido amplo, uma lógica (ainda uma vez, coletivamente urdida), que se move nele (Sócrates), perscrutando o que lhe é indivíduo e, vice-versa.

Anarquismo, desde sempre, foi e é o sistema, ou a espécie de sistema político-social que tende para louvar no humano a sua feição natural de -- animal individual-coletivo.

Algo que, hodiernamente, só é pensável através da manutenção ou ampliação do Estado social juridicamente instituído em face do avanço do privatismo e das organizações ou aparelhos de poder supra-estatais privatistas, globalistas, anarcocapitalistas.

Igor Buys

19 de janeiro de 2017

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Citações extraídas de “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia”, Vol. 5 -- Gilles Deleuze e Félix Guattari; 1ª Edição, 1997 (1ª Reimpressão -- 2002); Editora 34, Rio de Janeiro, RJ.

Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa.

Disponível na Rede.

Deleuze. Cópia de tela de vídeo.

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