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DILMA ENFRENTA GODOY E A CULTURA DO ESTUPRO E DO GOLPE

Estupro não é, ao menos, imediatamente, sobre prazer, senão sobre poder. O estuprador deseja exercer poder, domínio sobre a vítima e, apenas a partir disso, mediatamente, encontrar prazer.

A cultura do estupro e do golpe existe para manter relações de poder perversas entre homens e mulheres, entre plutocratas e desvalidos, entre brancos e não-brancos, entre conservadores preconceituosos e minorias sociais.

Trata-se, em sentido amplo, de uma linguagem que encontra o seu maior fulcro e onipresente respaldo no sistema de exploração, i.e., no próprio sistema de mundo imposto pela burguesia às demais classes e, para além, pela nação hegemônica, com suas nações parceiras e aliadas, ao conjunto dos povos.

O regime do capital em si, ver-se-á adiante, estupra e impregna no psiquismo coletivo o modus operandi dessa cultura de violação e anulação brutais da individualidade e da humanidade, — dois valores, da forma mais paradoxal possível, enaltecidos pelo liberalismo, que se proclama um sistema individualista e paladino na defesa de human rights.

A dinâmica básica da exploração e da mais-valia, centrada no lucro, envolve a aproximação insidiosa, a conquista premeditada da confiança, o logro, a perfídia e, finalmente, a brutalização da vítima, que é desumanizada para poder ser vilipendiada sem dó pelo vitimador, o qual, por seu turno, abdica da sua própria humanidade, a fim de represar no seu corpo, também violado, o mecanismo natural da empatia humana. Assim, para coisificar a vítima, o estuprador se coisifica a si próprio no mesmo ato, no mesmo — golpe.

Vender por vinte, trinta ou cinqüenta o que se sabe valer dez, pressupõe conquistar algum nível de confiança, usando de meios de convencimento, para, enfim, dar o golpe: trair a vítima e violentá-la, roubando o valor inerente ao seu trabalho, ao seu tempo de vida, ao seu suor e desgaste — corporal e, enfim, transformá-lo em capital, em acúmulo de mais-valia.

Essa dinâmica, essencialmente cruel e bionivocamente desumanizadora, é mais que legitimada pelo sistema: é, deveras, sacralizada como o seu fundamento maior e inquestionável.

It is not personal: it is only business, repete o cinema de propaganda subliminar estadunidense ao ego de suas vítimas. Ou seja: o autor do ato está ausente: quem — ou o que — age em seu lugar, ou no lugar da decantada liberdade dos liberais, e aplica o golpe não é a sua pessoa: é o business: uma abstração com que se confunde o próprio sistema. Esse sistema que funda a cultura do estupro e do golpe e que nela se sustenta, convenientemente isentando os seus agentes da culpa pela violência.

Eis a primeira esfera da banalização do mal que conduz, no plano mais empírico dos seus desdobramentos, aos estupros coletivos.

Tais atos são tão veementemente condenados pelo sistema e seus agentes, não porque, contraditoriamente, sejam estes capazes agora de uma empatia e compaixão em relação à vítima que, de maneira nenhuma, conheciam até então; mas porque a exposição empírica das entranhas do processo de exploração, reificação e roubo do corpo e da dignidade não de um, mas de todos e de cada qual sob essa ordem, põe em cheque as bases do capitalismo de modo extremamente loquaz e constrangedor.

E a resposta do sistema, então, desse sistema infantil e gerador de infantilia, é estuprar coletivamente o estuprador e levar a população a aplaudir tal prática, extraindo dela um conforto sádico — ou sádico-anal, para ser mais preciso —, conivente, partícipe e entorpecedor.

O corpo do estuprador é entregue aos detentos nas carceragens pelos juízos para ser seviciado; ou, senão, é seviciado pela polícia, ou, ainda, pelo crime organizado, e mutilado em suas partes genitais, penetrado por bastões e objetos fálicos os mais vários, perfurantes, cortantes, até sua completa degradação e destruição. Ato que a sociedade é levada a entender como justiça e extensão do seu próprio falo: o Estado estuprador é o falo vingador da sociedade estuprada e supostamente vingada por meio do estupro, sempre coletivo, numa espiral infinita.

Diante desse quadro aterrador, como evitar que, no âmbito das relações interpessoais, o modus operandi do estupro e do golpe sejam a regra?

A entrevista da jornalista Mariana Godoy à Presidenta Dilma Rousseff é emblemática para a análise dessa questão.

No momento do afastamento temporário da Presidenta, dado por meio do processo fraudulento de impedimento de que é vítima, o qual, carente de qualquer base jurídica, de qualquer fumo de crime de responsabilidade, se afigura, clara e notoriamente, para toda a comunidade internacional isenta, como um golpe de Estado; nesse momento tão delicado da vida da Presidenta e da nação, Godoy, finalmente — após meses declarados de resistência por parte de Dilma —, apelando, quiçá, ao seu desejo pessoal e concomitante dever histórico de se expressar sobre tal conjuntura, consegue penetrar no Palácio da Alvorada, local do exílio da magistrada suprema, conquistando, portanto, um voto de confiança de sua parte.

A perseverança nesse intento e a perseguição do momento de fragilidade, do ponto vulnerável da pessoa visada são fundamentos sagrados da lógica da exploração para a atribuição do mérito liberal, vale ressaltar.

O estuprador em sentido estrito, de modo análogo, precisa encontrar sua presa encurralada, em situação de desvantagem ou surpresa; ou precisa construir essa situação, aliciando a vítima, oferecendo-lhe uma carona num dia de chuva, no meio de uma estrada, com um sorriso quebrantador nos lábios, com uma fala mansa e envolvente.

Godoy chega a utilizar técnicas de rapport durante a entrevista e, provavelmente, durante todo o processo de aproximação com que visou à Presidenta, o que não chega a ser um refinamento digno de espanto, numa época em que tais técnicas são ensinadas, e com alguma profundidade, às vendedoras de cosméticos de uma grande empresa do ramo. Mas, por outro lado, ilustra o empenho da... jornalista numa das etapas essenciais do modus operandi que se discute.

Uma parcela dos apoiadores da mandatária foi, no curso desse mesmo processo, simultaneamente seduzida a acreditar que o objetivo da entrevista era dar voz à Presidenta, ao invés de amordaçá-la, e a expectativa gerada, conflitando com o resultado final da insídia, foi o que ocasionou, já durante a apresentação do programa, certo nível de revolta, expressa de plano através das mídias sociais.

Entanto é da pragmática do estuprador pôr a mão sobre a boca da vítima, ao ponto de que tal gesto seja tomado como símbolo da cultura do estupro e do golpe pelas ativistas e pelos ativistas que a combatem. A vítima deve ser calada, amordaçada; e, durante todo o processo político, judicial e midiático do golpe de estado em curso no País, algo que salta às vistas de todos, desde afora de nossas fronteiras, é a sistemática tentativa de calar Dilma e mesmo os seus apoiadores e os movimentos sociais que denunciam a conspirata. O seu direito de defesa tem sido cerceado com incrível violência contra a ordem jurídica; seu advogado é perseguido; os senadores que se suspeita possam vir a votar contra a consolidação do golpe de Estado em urdidura são, subitamente, denunciados, implicados em escândalos midiáticos, chantageados e constrangidos de todas as formas.

E a entrevista de Godoy acaba se afigurando mais uma dessas tentativas de amordaçamento, que, felizmente, malogrou, porque a Presidenta Dilma soube se livrar muito bem das amarras, das ciladas, das contraditas apaixonadas, das interrupções e chacotas profundamente desrespeitosas; soube suportar as sevícias — ainda uma vez — e fraturar o sistema e a cultura do estupro e do golpe, em lugar de ser quebrada por seus molestadores.

Sua benevolência em citar Hanna Arendt para aplacar a noção de que quaisquer pessoas devam ser satanizadas pelos seus erros e malfeitos também não será olvidada, mesmo quando a “entrevista” em si — estranha entrevista sem perguntas — e, sobretudo, o nome da jornalista já tiverem sido devorados pela traça do esquecimento.

Foi mais um momento de superação de Dilma Rousseff em sua jornada inquestionavelmente épica pela vida política deste País.

O elemento da crueldade contra a Presidenta eleita está presente em detalhes pequenos — aliás, pequeníssimos —, mas chocantes, como os holofotes projetados contra ela, em relação aos quais chegou a dizer, em tom descontraído, que esquentavam em excesso, mas nenhuma solução técnica foi aventada para o problema. E, depois de um dos cortes para publicidade, via-se que Dilma transpirava e que seus cabelinhos, do lado esquerda da cabeça, estavam molhados. Não havia nenhuma empatia, nenhum respeito humano em relação à mulher madura, que, na entrada do programa, se ouviu falar sobre o revés que enfrentara quando acometida daquela doença; sobre como havia perdido os cabelos durante a quimioterapia, etc..

Os que conseguiram envolvê-la naquela situação de imobilidade, maniatando-a diante de um conjunto de câmeras e uma enorme responsabilidade, já não precisavam lhe sorrir ou lhe chamar de presidenta, como prometido num vídeo feito antes do... show. Ou do talking, como é definido aquilo pela apresentadora de TV. Tinha acabado a etapa do aliciamento e se iniciado a da brutalização. Os rostos agora eram de pedra; a visão focal daquela matilha de lobos estava voltada de todo para o mister de eviscerar sua vítima e, imersos nessa sanha, não podiam mais sequer ouvir o que tinha a dizer.

Obviamente, são os livros autografados de Fernando Henrique Cardoso — “decano do golpe”, segundo um jornalista de verdade, e não de alcova, que comentou o fato —, oferecidos como presentes à Presidenta o que, propositalmente, mais choca na performance de Godoy e torna o evento, definitivamente, em mais um circo de horrores para o qual fomos todos tragados, na história do conluio quinta-colunista de 2016.

O peso físico dos volumes entregues tão de mau jeito a uma senhora, não contivessem esses volumes o que contêm, já importaria em uma afronta.

Repetindo Bolsonaro, quando dedica seu voto ao coronel Brilhante Ustra, o factóide macabro produzido por Mariana Godoy para encerrar o seu espetáculo de, cremos, muito malfadada autopromoção corresponde perfeitamente ao cuspo do estuprador sobre a vítima, ao final da violação.

E é um gesto repetido seu: já havia feito afronta semelhante, ainda que muito menos grave, a Dom Bertrand de Orleans e Bragança, lhe oferendo, depois de extraída dele a caricatura esperada, uma estatueta barata e horrenda de Joana do Arco...

Inclusive, o escopo geral do programa Mariana Godoy Entrevista agora está claro: convidando para essa arapuca nomes da esquerda e da extrema-direita, nunca do centro, ela vai procurando produzir uma visada caricata e destrutiva de todos, de modo que apenas a tucanagem, o entreguismo sobreviva ao seu veneno.

Quem foi ou vier a ser entrevistado por Godoy sem se ver vítima de bullying, como Erundina, que dividiu tempo de entrevista com um músico, pode estar certo, a esta altura, de que é tido como inofensivo pela apresentadora e está lá para encher lingüiça ou como degrau. Um dos seus alvos reais era Dilma; o próximo talvez seja Lula.

Porém, Dilma não se deixa sujar pelo bullying e manifestação de ódio: ela está imensa demais para ser tocada por algo que partisse de vísceras tão tristemente comprometidas com o mal sistêmico e naturalizado. São alguns milhões de eleitores e militantes que, contingencialmente, assimilam em seu lugar, sobre suas faces e almas, de modo, quiçá, indelével, esse muco sórdido e toda a sua simbologia gorgônea.

A pior consequência possível para o fato seria que a militância política consciente utilizasse as páginas da entrevistadora na Rede Internacional de Computadores para extravasar seus sentimentos de forma que, ainda uma vez, colaborasse para recrudescer a cultura do estupro e do golpe. Seria, realmente, lamentável se algo assim chegasse a suceder.

Dilma não citou Arendt naquela situação à-toa: estava tão consciente quanto, digamos, iluminada pelos fluxos dialéticos da História. É de mister compreendermos que a apresentadora, primeiro, é uma mulher, uma mãe; e, segundo, uma pessoa que pode, inclusive, guardar ótimos sentimentos e não estar sequer tão ressentida ou ser depositária tão consciente do ódio que flui através de si.

A nossa aposta é no sentido de que, assim como um dos carrascos nazistas que foram objeto do exame de Arendt, a moça em questão desejava apenas mais ascensão social e aprovação entre os seus colegas de profissão. Esperava — quiçá, equivocadamente — abrir portas no campo da esquerda, sem cerrar nenhuma junto à direita para continuar a exercer essa forma, lamento dizer, vil e amesquinhada, esse arremedo de jornalismo que sabe fazer.

Aqueles que se pretendem ou se proclamam neutros, os ready for business, são sempre, por força, o mais despersonalizados entre os operadores de uma cultura posta ou ideologia reinante de ódio e violência. Não cumpre, realmente, culpá-los, senão procurar compreender que vêm a ser apenas pessoas sem pessoa — not personal —, esvaziadas, cujas supostas liberdades são, de fato, instrumentos de uma subjetividade coletiva e avassaladoramente pervertida.

Igor Buys

12 de junho de 2016

Foto doméstica

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