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Protógonos

QUARTO ATO


VI – Narciso



Numa tarde dourada de primavera
Eu vagava por um bosque virgem,
Certamente nunca visitado por humanos,
Mas tão-só pelas ninfas e entidades da floresta
E, com maior certeza ainda, pelos deuses
Dada a magnífica beleza de tal local.

Flores como tochas amarelas, lilases e azuis
Abriam-se por entre a folhagem esmeraldina
E tudo o que eu avistava parecia esbater-se na luz
Dourada que tornava densa a atmosfera
Perfumada e fresca do bosque encantado.

Um lobo-guará esquivo em meio à folhagem
De súbito estancou, avistando-me... E já correu.
Num impulso, decidi bater-me em corrida
Contra o magnífico animal de pelo cúprico;
Por sobre troncos possantes recobertos
De lã verde eu saltava a perseguir o lobo
Lesto e conhecedor do seu território.

Ele ameaçava adentrar à esquerda e
À direita é que imergia, entre folhas largas,
Gravetos e espinhos lacerantes; eu arfava,
Tragando do ar úmido e amarelado que
Trazia-me ainda mais força, vigor e alegria.
E, assim, corria, corria por brinquedo trás
O lobo lépido, até que... ora, uma visão...
Petrificou o meu ímpeto. E o meu olhar.

Uma larga clareira abria-se dentro da mata,
Daquela esplendorosa mata que, como dissera,
Os próprios deuses não poderiam ter deixado
De amar e visitar em seus momentos de volúpia

E de ternura. E tal clareira estava para tal mata
Como um oásis estaria para um deserto ermo.

Inebriado, pasmo pus-me a contemplar
A maravilhosa paisagem ao centro da qual
Uma lagoa incendiava-se da chama azul dos céus,
Com uma delicada coroa de arvoredos floridos
Margeando toda a sua volta... Apaixonado,
Sorri para aquela paisagem deslumbrante
Que, radiante, parecia sorrir-me em retorno.

Cerrei as pálpebras... E toda Ela, a paisagem,
Por um instante, imergiu na negação... de vida.
Tornei a abrir os olhos: e lá estava Ela de novo:
A lagoa de platina incandescente, a relva fulva
Do cair da tarde, como chachos ruivos, adornados
De falenas luminosas: estilhas esvoaçantes

De um vitral encantado a explodir!

Ah, que deliciosa combinação de perfumes!
Caminhei sobre o tapete persa das gramíneas
Quase todo estampado de pequeninas florezinhas
E, aproximando-me da lagoa de azul e nuvens lentas,
Ajoelhei-me e deitei o peso do corpo sobre as mãos...
Foi então que a encontrei... sua fronte divina me surgiu...
Surgiu sobre o espelho d`água exatamente..., ora
Exatamente onde devera ter surgido o meu próprio rosto.

Era uma jovem incomparavelmente bela,
Dir-se-ia uma deusa facilmente; sim, uma deusa, ou ninfa,
Encarcerada por algum cruel feitiço de Juno enciumada
Sobre a tona vítrea daquela lagoa... Que cruel destino!
Olhei-a,

Olhei-a nos olhos, a tez alva, a expressão perdida...
E o sangue do meu corpo ferveu dentro de mim
Como se a paixão o houvera substituído pelo sangue
De um leão ou de um vulcão.

Ah, como eu a amava; como idolatrava
Cada traço do seu rosto perfeito! Do seu olhar
Transbordava a sua alma... triste... Murmurei-lhe
Sobre o meu amor; fiz-lhe juras de eterna dedicação:
Iria libertá-la daquele cárcere terrível ou morrer
Ali, ao pé de sua imagem, de sua vida tênue, introvertida.
Num impulso, me arrojei para ir buscar ajuda,
Mas, ao erguer-me daquela posição... "não", vi sua fronte desfazer-se,
E, temendo perdê-la para sempre, retornei...
Retornei à contemplação apaixonada de seu rosto.

Caiu a noite e o lago de espelho vestiu-se de estrelas.
Alua deslizava em arco a nossa volta.
Amávamo-nos com as nossas almas..., a nossa alma
Tornada una. Com a alvorada o que eram águas doces
Volveu a lava vulcânica, desesperada e rubra;
Mas permanecíamos imóveis a nos contemplarmos.
Sete dias e sete noites se passaram e o nosso drama
Não comoveu os deuses. Morríamos à míngua.
Erguendo o corpo com a força dos braços
Emagrecidos, entrevi um tórax esquelético
E percebi que formigas negras devoravam
As minhas pernas,
Entrando e saindo por galerias abertas na minha
Pele... que sequer me doeraa, sequer doía

Mesmo agora.
Sorri para ela, docemente. Meu fim estava próximo.

Súbito, uma fraqueza mais severa
Fez estremecerem os meus ossos e músculos.
Procurei por todos os meios manter a fronte erguida
Mais a exaustão iria me vencer... “Eu te amo”, disse a ela
E ela a mim no mesmo tom; e, então, a minha vista fez-se

Baça, minha cabeça pesada como um rochedo...
Meu ego em seu eco mergulhou e afundou inteiro.
Afundou no lago movediço. Enquanto afundava,
Não vi mais sinal de luz ou cor..., nenhuma sombra
De existência; apenas a água surda, me tragando

Tragando
Para dentro do negro... do nada... do nunca.

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