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Protógonos

SEGUNDO ATO


IV – Tauromaquia

 


Despertei... E me encontrava caído ao chão.
No interior de um túnel cujas sólidas paredes
Foram-se tornando concretas aos poucos
Diante dos meus olhos ainda baços.

Olhei para a porta do túnel e o dia resplandecente
Banhava de luz amarela um denso bosque verdejante,
Emoldurado pelas paredes lúgubres do edifício
Em que me via mergulhado... E um vulto, um vulto
De mulher sem bordas certas imergia em tal clarão.
É Ariadne! “Ariadne”, murmurei, enquanto me erguia
Do solo, sentindo a cabeça latejar violentamente.

No chão, ao pé de mim, avistei um novelo luminoso.
Tomei o objeto, recordando-me de uma promessa.
De uma tarefa e um desafio aterrador.
O vulto de Ariadne,
Ao trespassar o portal do túnel, tornou-se nítido
Sob a luz do sol exterior e, voltando-se para trás,
Ela me lançou um intenso olhar de despedida...
E, em seguida, caminhou para fora do quadrado
De fogo, deixando-me só com o meu mister.

Olhei na direção oposta: o túnel que levava
Às entranhas do edifício parecia não ter fundo
E a sombra espessa, o líquido negror que o invadia,
Ao longe, tinha a tez do nada, do nunca...
Principiei a desenrolar o novelo e me arrojar
Pelos intestinos do labirinto, afastando-me,
Ao mesmo passo, do portal incandescente
E da natureza: dissolvia-me na penumbra.

O fio de azul fosforescente ia-se deixando
Derramar pelo chão de pedra lisa. Tochas
Dispostas a espaços regulares nas paredes frias
Fizeram-se notar subitamente; voltando-me para trás,
Não pude mais avistar a entrada do prédio e a luz
Externa. Enigma bizarro: eu que pensava caminhar
Em linha reta, agora notava: o fio do novelo se perdia
Numa curva que descrevera sem perceber. Alucinação
E pedra, pedra e alucinação se imiscuem aqui,
Entre essas paredes, irmãs do aço e do oco,
Que sequer consentem em fazer eco a meus
Passos... pétreos, ai, mudo mineral maldito!

Atento às entradas dos túneis laterais que se abriam,
Aqui e lá, dando a ver apenas o útero da sombra
E da pura negação, não tardei a ouvir pesadas
Passadas brutais: as passadas de um gigante,
Um monstro, cada vez mais próximas de mim.
Estanquei, por fim, diante da visão da fera:
Meio humana e meio bestial, com cabeça de touro
E músculos de Titã, surgindo a minha frente.

A criatura se estorceu sobre as pernas e as mãos,
Tocando o solo como um grande macaco e,
Urrando pavorosamente, — lançou-se sobre mim.
Eu me retesei diante daqilo e, quando já podia sentir
O calor do seu hálito queimando a minha pele,
Agarrei as pontas dos grandes chifres afilados
Do monstro e atirei o corpo para o alto, desferindo
Um salto mortal no ar por sobre o corpanzil
Medonho, que continuou a correr, procurando por mim.

Caí de pé por trás da aberração, que ainda corria.
Distante já, a coisa refreou-se. Farejou... Farejou
O ar a minha procura... E voltou-se, confusa e hesitante.
Tornou, então, a se atirar sobre mim, repetindo o mesmo
Movimento ofensiva e, pela segunda vez, agarrei

Aqueles cornos e desferi uma cambalhota no ar por sobre eles,
Caindo de pé detrás do oponente desnorteado.

À larga distância de mim, o híbrido medonho
Lançou o seu horrendo urro de fúria e desconcerto.
Desenrolei do corpo uma capa vermelha que trazia
E empunhando-a ao lado do meu tronco arqueado,
Provoquei-o. A chama das tochas em seus olhos
Reverberavam de um modo pavoroso. O diabo
Estudou-me de longe, e logo desatou carreira
Em minha direção; passou ao largo, atingindo
Com os chifres apenas a capa esquiva e, tonto,
Tropeçou adiante, humilhado e a arfar.

Parecia ferido... De algum modo, ferido.
E começou a dar sinais de exaustão.
Lançou-se novamente contra a capa,
Fazendo-a esvoaçar e tocando de raspão
Com a ponta de sua arma a minha coxa
Que se rasgou. O sangue quente me abandonava,

perna abaixo, tornando escorregadia a rocha nua.
Tornei a provocá-lo, caminhando em sua direção.
O monstrengo estava já bem confuso e exaurido.
Saquei, então, a minha espada e continuei
A acercar-me dele. Seus olhos rubros e brilhantes
Concentravam-se na capa, temerosos.
Estiquei a espada em riste e preparei-me
Para o bote... Numa estocada certeira,
Feri-o na nuca; a fera berrou. Debateu-se...
Caiu fulminada sobre o solo surdo.

Deixei soltar-se de entre os meus dedos o cabo da espada.
Saquei da cintura uma faca afiada,
Dirigi-me até o colosso quedo
E cortei-lhe a orelha, erguendo alto o meu troféu.
Com os braços em cruz, lancei um brado tribal

ao infinito!

[O brado.]

Em seguida, separei com a faca
A cabeça de touro do corpo humano que a sustentava.
A cabeça taurina, lançada ao chão, transformou-se
Num corpo humano.
E o corpo humanal do Minotauro rarefez-se em espírito.

O espírito, então, me ofereceu uma lâmina
Do Livro de Thoth; aquela chamada — A Força.
O fio de luz azul do novelo de Ariadne
Guiou-nos, os três, para fora do labirinto.
A minha tarefa estava cumprida.

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